23/06/2017

CRÓNICAS DO CORAÇÃO DO MINHO (1) - VIra o Vento e Muda a Sorte

VIRA O VENTO E MUDA A SORTE

De há uns tempos para cá vinha-se a sentir uma lufada de “ar fresco”, com ventos de feição [metaforicamente], apesar de [meteorologicamente] o tempo estar abafado e excessivamente quente. Vamos a factos concretos: Porto considerado, novamente, o melhor destino europeu em 2017; calor humano na visita do Papa Francisco a Fátima; no mesmo dia, a surpreendente vitória de Salvador Sobral no Festival da Eurovisão; também de forma surpreendente, o ministro alemão das Finanças, Wolfgang Schäuble, a rotular Mário Centeno como o “Ronaldo do Ecofin”, reforçando-o mais tarde, para que não houvesse dúvidas, face aos resultados de retoma da economia portuguesa e ao “controlo” do défice; o primeiro-ministro, António Costa, a pedir e a ver autorizado a saída de Portugal do PDE – Procedimento por Défice Excessivo; idêntico pedido efetuado ao FMI e às autoridades europeias para antecipação do pagamento de 10 mil milhões de euros, ao longo de dois anos e meio, podendo levar a uma poupança de 1,3 mil milhões de euros; o anúncio que Portugal é o 3.º país mais seguro do mundo; o início do verão e começo das festas populares, um pouco por todo o lado, mas vividas de forma mais vibrante a norte…

O São João de Braga, rotulado como “a maior festa popular de Portugal”, teve início no dia 14 e termina a 25 de junho. Porque o programa é mesmo muito extenso, limito-me a resumir o folheto promocional (e a acrescentar pouco mais): 12 dias de animação; 238 horas de programação; 113 iniciativas previstas; 9 cortejos e desfiles; 12 exposições; 19 espetáculos; 10 mil pessoas envolvidas (figurantes, organização, artistas, atletas, voluntários…); 203 entidades envolvidas; 1 milhão de participantes esperados; tradições seculares únicas – carro do Rei David, carro das Ervas e carro dos Pastores; o maior cortejo folclórico nacional; a maior procissão sanjoanina de Portugal – 800 figurantes e 9 andores, com batalha de flores; o maior encontro de Gigantones e Cabeçudos da Península Ibérica; a maior concentração de Tocadores de Bombos de Portugal; um grande festival de Cavaquinhos e encontro de grupos de Concertinas; noite académica – participação dos vários grupos culturais da Universidade do Minho; o maior encontro de Joões do mundo; concursos de martelinhos ilustrados, cascatas de São João de Braga, melhores desenhos alusivos às Festas de São João e de quadras populares; jazz nos jardins; concerto pelos carrilhões de Santa Cruz, Sé e São Vicente; atuação de um número apreciável de bandas filarmónicas; cortejos das Rusgas; várias atividades desportivas; e muita, muita animação de rua.

O concerto “Um Cavaquinho e… um Bombinho”, logo na primeira noite, com a participação do artista popular Augusto Canário, que convidou uma “multidão” de amigos, deu o mote:
“Um povo que canta / é um povo feliz / solta da garganta / o que o peito diz (…)”
Na verdade, goste-se ou não do género musical, a alegria era bem patente, contagiante e vivida de forma intensa. O povo do norte é mesmo assim!

Já cantava Zeca Afonso em “Natal dos Simples”: “Vira o vento e muda a sorte (…)”
De repente, toda esta alegria e euforia parecem ter-se esfumado, virando tragédia. Soa a estranho quando, certamente com convicção e consciente da gravidade da situação, a organização das festas de São João de Braga sinta necessidade de reduzir atividades festivas e eliminar foguetes, pelo luto nacional de três dias. Soa a estranho, que uma juventude alegre e generosa, no início de um espetáculo, peça um minuto de silêncio pelas vítimas. De um momento para o outro, parece que os festejos deixam de ter significado perante tanta tragédia humana, material e do próprio ecossistema, registada em vários concelhos da região centro. O organização das festas de São João de Figueiró dos Vinhos, um dos concelhos afetados, cancelou mesmo os festejos.

A GNR diz que em 33% dos casos de incêndio em zona florestal há “mão criminosa” – situação de fogo posto (desde conflitos com vizinhos, interesses de madeireiros, fascínio doentio pelas chamas para ver bombeiros em ação, em que muitos casos se alega demência…). O presidente da autarquia de Pedrógão Grande foi contundente ao afirmar que acreditava tratar-se de “fogo posto”; o presidente da Liga de Bombeiros também. Segundo o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, a principal causa dos incêndios florestais é a negligência humana; aponta que, em 80% dos casos dos incêndios em Portugal, são resultado de descuidos (queimadas descontroladas, lançamento inadvertido de pontas de cigarros, foguetes, refeições/grelhados nessas zonas… Neste caso, em poucas horas, a Polícia Judiciária apontou “causas naturais” – descargas elétricas gerada por uma tempestade. O Instituto Português do Mar e da Atmosfera, confirmou a existência desse fenómeno na zona, com 277 descargas. A Autoridade Nacional de Proteção Civil alegou a conjugação de um número anormal de fatores, onde a mudança dos ventos intensos foi determinante. O presidente da República, muito presente, afirmou que “o que se fez foi o máximo que se poderia ter feito (…) não há falta de competência, nem falta de capacidade, nem falta de imediata resposta perante desafios dificílimos”. Jorge Gomes, secretário de estado da Administração Interna (que conheço pessoalmente desde 1973), mesmo habituado a estas lides, quando ocupava o cargo de governador civil de Bragança, sempre próximo da cadeia de comando da proteção civil, afirmou à comunicação social logo no início, com claro pesar e voz embargada: “Se me permitem dizer-lhe o que sinto, sinto que o fogo está a alastrar por todo o lado”; confirmou, mais tarde, que terá havido falhas no SIRESP – Sistema Integrado de Redes de Emergência e Segurança de Portugal (uma parceria público-privada já com muitos anos, a envolver muitas centenas de milhões de euros…). Pretende-se, com este sistema, que haja a garantia de uma rede de comunicações única e dedicada, com qualidade de comunicações e exclusiva entre forças de segurança, emergência e proteção civil. Desde 2010 terão sido instaladas mais de quinhentas torres de comunicação, seis centrais, cinquenta e três salas de despacho, duas estações móveis com sistema via satélite, tendo sido distribuídos 23.000 terminais (telemóveis de acesso à rede). Com algumas dessas torres e antenas dos operadores convencionais destruídas pelo fogo, tal como muitas dezenas de quilómetros de rede de telefones fixos, as populações “resistentes” naquelas aldeias isoladas ficaram mais vulneráveis. Parece pouca toda a gratidão que evidenciarmos aos bombeiros anónimos, vindos de toda a parte, que lutaram e lutam, até à exaustão, no terreno. Atenua a dor, às famílias das vítimas, toda esta onda de solidariedade gigante, porque gigante é a alma do povo português. A mãe-natureza, dorida, encarrega-se de se regenerar. Assim aprendesse o ser humano, perante a adversidade. São tão evidentes as alterações climáticas e os seus efeitos devastadores, assim como são bem conhecidas as causas. Estamos na era dos elementos Fogo e Água. A subida da água do mar e alagamento do território será outra fonte de preocupação. Há caminhos apontados e ideias a interiorizar. A ação está ao nosso alcance. Basta-nos despertar, fazer algo coletivamente e recriar bons ventos. A “sorte” vem por acréscimo.


© Jorge Nuno (2017)

10/06/2017

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (60): Crónica "Em dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas"

EM DIA DE CAMÕES, DE PORTUGAL E DAS COMUNIDADES PORTUGUESAS

Minha pátria é a língua portuguesa

Desde 1933 que em 10 de junho se celebra Luís Vaz de Camões, com a data a assinalar a sua morte, ocorrida em 1580. Este, considerado (por muitos) como o mais importante poeta português, entre poesia lírica e algumas comédias, teve notoriedade com a obra “Os Lusíadas”, que “relata factos heróicos da história de Portugal, em particular a descoberta do caminho marítimo para as Índias”, pelo capitão-mor Vasco da Gama (de 1497 a 1498). O Dia de Camões começou a ser uma realidade nacional por iniciativa do Estado Novo, com António de Oliveira Salazar a comandar os destinos da “Nação”. Ao Dia de Camões, juntou-se os condimentos “Portugal” e “Raça” (portuguesa, subentenda-se) para exultar os feitos gloriosos dos portugueses ao longo de séculos, servindo igualmente de propaganda para sustentar o regime. A partir de 1978, já depois da “Revolução dos Cravos”, passou a ter a designação atual, com um sentido diferente.

Sempre gostei mais de Fernando Pessoa do que de Camões, apesar de ambos terem o mesmo destino “patriótico” – o chão frio do Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa –. A obrigatoriedade de ler Camões não era muito bem vista nos bancos das escolas. Por diversas vezes, imaginei uma outra longa e idêntica frase para comemorar o 10 de junho, começando como “Dia de Pessoa…”. E até penso que Camões, a ser coerente, aprovaria. É que ele escreveu algo que muito admiro, pois mostrou muita clarividência, para a época (com texto transcrito em ortografia atual, com vista a um mais fácil entendimento): “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades / Muda-se o ser, muda-se a confiança / Todo o mundo é composto de mudança / Tomando sempre novas qualidades”. Fundamento o que digo, do seguinte modo: tivemos Eusébio, desde os anos sessenta do século passado, como um herói nacional na qualidade de futebolista, figura que aprendemos a respeitar pela sua postura sempre correta e humilde e pelas alegrias que nos proporcionou; posteriormente, surgiu um outro futebolista – Cristiano Ronaldo – que tem incontestavelmente maior projeção internacional, é o desportista mais bem pago da atualidade e o mais conhecido a nível mundial, além de ter batido, claramente, todos os recordes anteriores (incluindo os de Eusébio) e assumir querer ficar para a história como o melhor futebolista de todos os tempos.

Mas Fernando Pessoa surpreendeu-me com uma frase, que retenho, e que me deixou algo desapontado ao ler o contexto da mesma. Sob a “mão” de Bernardo Soares, em “Livro do Desassossego” escreve, tal e qual era usual: “Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho porém, um sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem  pessoalmente. Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa própria, a syntaxe errada, como gente que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja, independentemente de quem o cuspisse. Sim, porque a orthographia também é gente. A palavra é completa, vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-m’a do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha”. Era como se Pessoa tivesse a premonição da subjugação de Portugal a outros interesses, em vários domínios, incluindo o económico e a própria língua.

Curiosamente, no mesmo dia, reli um delicioso texto de Teolinda Gersão, como se fosse escrito pelo João Abelhudo, um suposto aluno do 8.º ano, e que intitulou: “Redacção – Uma declaração de Amor à Língua portuguesa” e, à noite, li também mais algumas páginas do livro “Conquistadores – como Portugal criou o primeiro império global”, obra fascinante de Roger Crowley. Sobre este último, é possível ficar a conhecer factos que foram ocultados ou distorcidos nas nossas aulas de história e, por exemplo, alguns trechos de diários de bordo das frotas portugueses, aquando da expansão portuguesa no séc. XV e XVI, incluindo a primeira viagem da frota comandada por Vasco da Gama, na “descoberta do caminho marítimo para as Índias”. Aí é bem visível o português tal qual era falado e escrito naquela época, de difícil entendimento hoje. Quanto ao texto de Teolinda Gersão, escrito após ajudar os netos a estudar português, é considerado um “epitáfio à língua de Camões” e que recomendo, embora não resista a deixar aqui um “cheirinho” da parte final: “E pronto, que se lixe, acabei a redacção – agora parece que se escreve redação. O meu pai diz que é um disparate, e que o Brasil não tem culpa nenhuma, não nos quer impor a sua norma, não tem sentimentos de superioridade em relação a nós, só porque é grande e nós somos pequenos. A culpa é toda nossa, diz o meu pai, somos muito burros e julgamos que se escrevermos ação e redação nos tornamos logo do tamanho do Brasil, como se nos puséssemos em cima de sapatos altos. Mas como os sapatos não são nossos nem nos servem, andamos por aí aos trambolhões, a entortar os pés e a manquejar. E é bem feita, para não sermos burros. E agora é mesmo o fim. Vou deitar a gramática na retrete, e quando a setôra me perguntar: “Ó João, onde está a tua gramática?”. Respondo: “Está nula e subentendida na retrete, setôra, enfiei-a no predicativo do sujeito”.

A palavra “setôra”, para meu desagrado, faz parte do léxico nas comunidades educativas do país e ainda não foi incluída na língua portuguesa padrão e, como tal, não incluída em dicionários, mas pouco faltará. É que a língua é muito dinâmica e está em constante mutação, quer queiramos ou não. Seria interessante ver maior uniformização? Como utilizador comum, não me englobo nos chamos “puristas da língua”. Aprecio a diferenciação, a forma como as pessoas se exprimem habitual e livremente, seja no Alentejo, em Trás-os-Montes ou noutra região. A língua portuguesa – usada por mais de 300 milhões de falantes em várias partes do mundo –, tal como existe, parece “bagunça”. Mas, com maior ou menor dificuldade, é entendível neste pequeno país, nas regiões autónomas, noutros Estados membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e, em qualquer parte do mundo, onde estejam comunidades portuguesas. Nada deve ser forçado ou imposto. Com todas as variantes, é a língua de Camões, Vasco da Gama, Pessoa, Teolinda, Eusébio, Ronaldo, a minha com que falo e escrevo, a de quem me lê, sem tradutor. Neste dia dedicado a Camões, Portugal e às Comunidades Portuguesas, brindo à língua portuguesa e ao entendimento e união que proporciona!

© Jorge Nuno (2017)