22/12/2016

A Viagem

A VIAGEM

“Limita-se uma vida ao seu destino”
Como se um passageiro clandestino,
De fardo, nem ousasse caminhar…
“Pesada cruz de sombras e canseiras”
Por quem comete um chorrilho de asneiras
E, livre, não se deixa condenar.

“As rochas são fantasmas na penumbra”
Para quem na vida pouco vislumbra,
Mas realce “há sempre na noite escura”…
Em que na pura exaltação dos credos
“A madrugada vem despir os medos”
E o teu olhar devolve-me doçura.

“Tremem mãos de comoção no instante”
Como se fosse em viagem errante
“Onde ao lavrar os sonhos me confundo”.
“Ser um menino-velho com ideias”
E partilhar contigo vida a meias
Vem dar alento ao meu pequeno mundo.

Pouco importa ver as frases bordadas,
“O vício das palavras relembradas”…
“P’ra mascarar aquilo que pareço”;
Ou “se a saudade é roxa ou prateada”,
A minha poesia a ser cantada,
Vastos elogios que não mereço…

Quando um dia aquela negra ceifeira
Vier rondar para eu ser poeira,
Sem negociar uns quaisquer critérios
E não retroceder envergonhada,
Nem quiser a viagem adiada…
Irei “subir a rampa dos mistérios”.

“Há retalho do mundo à minha espera”,
Mais além do que se vê nesta esfera,
“Com música astral das noites brancas”.
“Um mundo dos espíritos das horas”
Que no teu relógio já não ignoras
E tudo irá fluir sem alavancas.

Mas “sei que alguém nos becos da memória”
Anotará a verdadeira estória
(Mesmo sem ter que a contar às crianças).
Neste longo amor, que eu tanto bendigo,
“Sei que o meu coração vai ter contigo”,
Ser peregrino de boas lembranças.

Não “esconjuro o feitiço do retorno”
E para obviar todo este transtorno
Irei fazer aquilo que apetece…
Surgir em qualquer noite de luar,
Afável, envolver-me a namorar
“Em loucuras de amor que o amor tece”.

© Jorge Nuno (2016)


Obs.: Baseado em alguns versos ou ideias extraídas da obra poética de Ulisses Duarte, a quem desta forma presto a minha homenagem. Envolve trabalhos da obra póstuma “Palavras com Distância”, os poemas “A Nau do Tempo”, “O Telefonema”, “O Limite”, o “Conto da Morte Anunciada” e parte da compilação de versos de Ulisses Duarte, feita pelo poeta Albertino Galvão. 

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (50) - Crónica: "O Pai Natal Escondeu O Menino Jesus"

O PAI NATAL ESCONDEU O MENINO JESUS

No “Natal dos Hospitais” – programa anual da RTP1 nesta época festiva – o apresentador/entrevistador, agachado, perguntava a uma criança: “Então diz-me lá, porque gostas tanto do Natal?”. Resposta pronta, simples e direta do miúdo, com um sorriso rasgado: “Porque recebo muuuitaaaas preeendaaaas”!
Esta resposta é a confirmação do que qualquer responsável de marketing há muito sabe: “Natal – época de aumento exponencial de vendas”. Aliás, a própria RTP1, no seu “Jornal da Tarde” de 21 de dezembro de 2016, revela um estudo do IPAM, coordenado por Mafalda Ferreira, a indiciar que nesta época de Natal “o consumo com compras de Natal vai ser o mais alto dos últimos seis anos”, havendo a previsão de um aumento de 24% face a 2015. Sendo dito, na reportagem, que se houver falhas é por defeito, ou seja, o consumo poderá ainda ser maior do que o previsto.

No mesmo canal, no programa “DDT - Donos Disto Tudo”, surge um sketch humorístico que se desenrola no setor de brinquedos de um hipermercado e tem três personagens: “Gostosona” [Joana Pais de Brito, a fazer de mascote de Natal, vestida de vermelho]; “Linguadão” [Eduardo Madeira] como alternativa à Gostosona”, e o “diretor de markeking de uma cadeia de hipermercados” [Joaquim Monchique]. Em estilo hip-hop, supostamente pretendia-se cativar a atenção de crianças. O diretor de marketing fazia recomendações aos colaboradores apalhaçados e lembrava: “(…) é uma maneira de sacar a guita aos paizinhos deles”. A dado passo, destacava-se o Linguadão a cantar: “Não aceitem as peúgas. Vocês têm de aprender a ser pedinchões, umas autênticas sanguessugas. Com o Linguadão é só gastar… gastar!...”   

Recebi, do poeta amigo – Henrique Pedro –, um e-mail com votos de Boas Festas e um link com um poema de sua autoria. Coincidência… o título tem algo de semelhante com o que tinha definido para esta minha 50.ª crónica, escrita para a BIRD Magazine. O título do poema é: “Deitaram o Pai Natal na Manjedoura no Lugar de Jesus”. Comecei e ler o poema e achei-o muito oportuno e descrevo apenas uma estrofe:
“(…) Converteram-no [ao Pai Natal] em mito comercial
e deixaram-no na manjedoura
para vender o feno e a palha do berço
e o esterco do estábulo
(…)”.
Porque entendo que o poema merece ser lido na íntegra e o poeta merece maior notoriedade, deixo aqui o link: http://henriquepedro.blogspot.pt/2016/12/deitaram-o-pai-natal-na-manjedoura-no.html

Também no meu romance “As Animadas Tertúlias de Um Homem Inquieto”, o Filó,  personagem central, tem esta estirada, em conversa com o Max: “(…) Antes tinha estado a fazer embrulhos do Natal e fui distribuir as encomendas e só não fiz de Pai Natal porque tinha de ficar horas a fio com criancinhas sentadas ao meu colo, a dizer coisas que elas gostam de ouvir, mas que eu não gosto, porque as mentiras não fazem o meu género. Iludir, por quê? Era melhor terem o presépio, com as figuras e pronto. E até já as ovelhas, a vaquinha e o burrinho estão a mais. E mesmo assim preferia fazer de burrinho do que de Pai Natal. Venderem ilusões a crianças, isso não se faz! Ainda por cima, no Natal é criada uma ambiência de apego material, que é precisamente o oposto do espírito natalício. Não era capaz de ter uma criancinha ao colo a dizer-me: Ó Pai Natal, eu quero uma PlayStation 3 de 320 GB, com comando Dualshock e uma consola Wii, com desportos radicais, um MP4 Player para Windows, um Smartphone Android 2.2 e mais isto e mais aquilo… Não sou mal-educado nem mal-intencionado, mas da maneira que isto está, acho que abria logo as pernas para essa criancinha cair e dizia-lhe logo, enquanto ela chorava baba e ranho “Não queres antes pedir ao Pai Natal para passar depressa o dói-dói?”.

Conheço bem o Filó e garanto das suas boas intenções, sendo incapaz de fazer mal a uma criança. Para quem não leu o livro, garanto também que aquilo era um desabafo de revolta, ao ver o ascendente do Pai Natal – o tal que traz e/ou entrega as prendas – e, igualmente revolta, ao ver tanto consumismo desenfreado (sendo certo que ele – Filó – vivia com muitas dificuldades económicas). E como esse consumismo, representado pelo Pai Natal, está a fazer desaparecer o verdadeiro espírito natalício – que tem como mote o nascimento de Jesus de Nazaré –, celebração que deveria simbolizar humildade, bondade, compaixão, solidariedade…
Por este andar, que ninguém se admire se ouvir perguntar: “Quem é esse? [o tal Menino Jesus]. Daqui, afirmo: “O Pai Natal escondeu o Menino Jesus”.

Votos de um Santo Natal.


© Jorge Nuno (2016) 

10/12/2016

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (49) - Crónica: "Dos Virtuais ao Aluguer de Amigos"

DOS VIRTUAIS AO ALUGUER DE AMIGOS

Falar de amor, ou mesmo de amizade, nem sempre é fácil, ainda mais por parecer que as palavras ficam esvaziadas de sentido. Não foi por acaso que escrevi um poema, que intitulei “Embelezar o que é belo?”, ao pretender escrever sobre o amor, realçando os equívocos em torno da palavra e conceito, a que associei a seguinte frase de Blaise Pascal (1623–1662): Clareza de espírito significa igualmente clareza na sua paixão. É por isso que uma mente superior e clara ama com ardor e vê distintamente aquilo que ama. Identifico-me, claramente, com o conteúdo desta frase. Mas pegando numa outra frase – a de Mário Quintana (1906–1994) –, que diz: A amizade é um amor que nunca morre, vejo-me tentado a abordar a importância da amizade, sob diversas formas.

Longe vão os tempos de brincadeiras na rua, em que as crianças conviviam de forma salutar, com exercício físico natural, mesmo que pelo meio se registassem episódios menos agradáveis. A verdade é que passados os instantes do rebuliço, apenas ficavam temporariamente os sinais, como uma camisa rasgada, um joelho esmurrado, a repreensão de um adulto… e logo se reatava a brincadeira e cimentava a amizade, que se prolongava pela vida fora, caso se continuasse a viver na mesma localidade.

Lembro-me quando atingi a maioridade e frequentava a Escola Náutica, em Lisboa, fiz algumas passagens pelo clube Stella Maris – que faz parte da organização católica internacional que visa “proporcionar bem-estar, hospitalidade e apoio espiritual a todos cujas vidas dependem do mar –. Havia momentos descontraídos, sem “segundas intenções”, que proporcionavam a integração numa cidade desconhecida, o convívio e a criação de laços de amizade, tratando-se de amigos e amigas que nunca mais vi, mas que tiveram muita importância pessoal naquela época.

Não gosto de ficar preso ao passado, pois muita coisa mudou e continua a mudar, a uma velocidade vertiginosa. Sinto que o melhor que temos a fazer é mantermo-nos na crista da onda e aproveitarmos para surfar, gozando o momento atual. E no momento atual, nas nossas vidas, estão os familiares e amigos, que nos acompanham na viagem.

Foi com o aparecimento das redes sociais on-line que muita coisa mudou, ao nível relacional. Encontrámos amigos que julgávamos ter perdido, reativando essa amizade, com redobrada intensidade. Criámos novas amizades e convivemos à distância. Chegámo-nos a encontrar, presencialmente, com alguns desses “amigos virtuais”, descobrindo que, afinal, parece que éramos amigos há uma eternidade! E como o mundo conturbado está a precisar da criação de fortes laços de amizade!

Li algures que a amizade é uma força permanente, que não se compra, não se aluga, não se vende. Nasce e morre com a gente. Sem querer misturar “alhos com bugalhos”, sabe-se que há quem procure acompanhantes de luxo para viagens de negócios, havendo, ao fim de algum tempo, relações de grande cumplicidade e de amizade (para não ir mais longe). Com o surgimento das passagens aéreas, em voos low cost, a partir de € 8 (quando um bilhete de autocarro ronda os € 15, para cobrir uma distância de 220 kms entre duas cidades) é natural haver agora mais pessoas a viajar, a baixos custos, para outros países; tal como é natural o surgimento de uma resposta às necessidades daqueles que se deslocam e não conhecem o local para onde se dirigem. É aqui que entra uma nova atividade económica: alugar amigos! Sim, há algumas plataformas tecnológicas, como a Rent a Local Frend, que permite alugar um amigo, a exemplo das que há como alternativa ao táxi – caso da Uber e Cabify –. Este serviço de aluguer de amigos existe em dezenas de cidades mundiais e permite contratar pessoas comuns, que possam levar o visitante a locais imperdíveis, que saem fora dos circuitos organizados. No fundo, é o mesmo que contratar um amigo a mostrar-lhe os pontos de interesse da sua cidade, no que tem de mais genuíno e caraterístico. Para que se fique com uma ideia dos preços, enquanto em Nova Iorque o acompanhamento diário, por parte de um amigo, pode rondar os 160 USD, em Lisboa oscila entre € 100 e € 120. Há outros serviços idênticos locais, direcionados a pessoas que têm problemas de solidão e gastam quantias significativas em medicamentos para dormir e em antidepressivos, quando, provavelmente, bastaria encontrar alguém disponível para ouvir e acompanhar. Mas atenção, há mesmo serviços de “acasalamento”, procurando o parceiro ideal, bem patente na expressão sorridente daquele sujeito patusco no anúncio da televisão, que dizia: “Estou marabilhado!”

© Jorge Nuno (2016)