26/11/2016

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (48) - Crónica: "Insólitos Legislativos... Por Cá"

INSÓLITOS LEGISLATIVOS…. POR CÁ.

Foram muitos os comentários, cartoons, anedotas, risota, indignação, e tudo o que possa passar pela cabeça de cada um, quando foi noticiada a intenção de se legislar o valor do IMI associado à exposição solar (que levaria a um agravamento do IMI) ou às vistas para um cemitério ou ETAR[1] (que, supostamente, representaria um desagravamento).

Recuando a 1937, o decreto-lei n.º 28219 – saído em 24 de novembro de esse ano –, criou uma licença de isqueiro. Isso mesmo! Obrigava o cidadão a ter uma licença, denominada “Licença anual para uso de acendedores e isqueiros”. A pedido, era emitida, de forma pessoal e intransmissível, por qualquer Repartição de Finanças. O custo associado a esta licença era significativa para a época, até ser abolida em 1970, altura em que tinha um imposto de selo de 50$00. Havia lugar à apreensão do isqueiro e multa de 250$00, caso fosse apanhado, por um polícia ou “fiscal de isqueiros”, sem a respetiva licença. O infrator era mesmo considerado delinquente e, se fosse funcionário público, a multa seria o dobro e comunicado ao seu serviço, o que faria com que perdesse, de imediato, cerca de metade do que ganhava durante um mês de trabalho. Para que se saiba – nem que seja por curiosidade –, 70% da multa revertia para o Estado e 30% para o autuante ou participante. No caso de haver denunciante, este recebia metade do valor do autuante. É fácil de ver que a legislação, ao penalizar fortemente os funcionários públicos infratores e ao permitir-lhe beneficiar de uma percentagem significativa da multa, caso fossem denunciantes, fazia com que estes se tornassem cúmplices do regime, que tudo fazia para ter controlo sobre tudo e todos.
Tive consciência da necessidade dessa licença em 1968, quando me deslocava na ponte de Santa Clara, em Coimbra. Parou um indivíduo, mesmo à minha frente, e puxou do cigarro e do isqueiro. Nesse momento aproximou-se um outro, que lhe exigiu a licença. De imediato, atirou o isqueiro para a água do rio Mondego e perguntou: “Qual isqueiro?”. Houve algum rebuliço, em que o “fiscal” tentava exercer a sua autoridade, mas, sem prova, desta vez não houve multa.
Porque achei estúpido obrigar uma pessoa a ter licença de isqueiro, tentei procurar uma justificação e foi-me dito que seria para proteger a indústria “nacional” dos fósforos, contra os isqueiros feitos noutros países.  
Como país é pródigo nestas matérias, tudo isso tem acontecido ao longo de décadas, renovado com outras temáticas, embora agora atenuado da prática do denunciante.

No início desta semana, perguntava a uma pessoa que me é querida, de uma forma simplista e com um sorriso enigmático, aquilo que poderia ser a interpretação de um cabeçalho de notícia, num qualquer jornal sensacionalista: “Sabias que agora vão cobrar uma taxa a quem tiver uma garagem com acesso direto a uma estrada nacional?”. Logo após a primeira tentativa para descodificar a minha expressão, a resposta foi imediata: “O dia 1.º de abril ainda está longe! Estás a querer enganar quem?” – tal era o absurdo –. “É verdade!”, insisto. Curta frase que vejo retribuída com: “´Tá bem, abelha!”, ficando o assunto por aqui. Mas como o caso me pareceu insólito, embora neste país já nada será de estranhar – ainda mais quando se trata de aplicar taxas e taxinhas –, fui pesquisar. Fiquei a saber que GNR tem vindo a notificar alguns proprietários, cidadãos comuns e empresas, para pagar licenciamentos à IP – Infraestruturas de Portugal (anteriormente designada Estradas de Portugal). Perante o desagrado dos visados e de autarcas, a IP diz estar a fazer cumprir a legislação em vigor. Trata-se da aplicação de uma portaria conjunta dos ministérios das Finanças e da Economia, datada de 14 de outubro de 2015, direcionada para quem tiver um imóvel com garagem, com uma rampa de acesso direto a uma estrada nacional. Um proprietário, que esteja nestas condições, será obrigado ao pagamento de uma taxa, rotulada de “licenciamento”, que pode chegar aos € 500 + custos do processos a rondar os € 1.250, assim distribuídos: € 500 para informar o processo; € 200 para ser emitido um parecer favorável (ou não); € 250 para uma vistoria extraordinária e € 300 para a reavaliação ou autorização. Fiquei também a saber que um conhecido autarca nortenho, com responsabilidades na respetiva Área Metropolitana, deu o exemplo de uma habitual festividade religiosa, em que haja uma procissão a atravessar a estrada nacional, estará sujeita ao pagamento das taxas.

No regime ditatorial era conhecido, ao pormenor, as percentagens a distribuir entre Estado, polícia, fiscal, autuante, participante e/ou denunciante, bem visível no verso da licença de isqueiro. Após quarenta anos de regime [dito] democrático, continuam as práticas absurdas, agravado pela falta de transparência de se dizer qual a percentagem qua cabe a cada um. Como apologista de uma democracia, no mínimo, acho insólito!

© Jorge Nuno (2016)

Obs.: Publicada na BIRD Magazine (criada na UTAD)





[1] ETAR – Estação de Tratamento de Águas Residuais

23/11/2016

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (47) - Crónica: "A Tentação da Arte, Insensatez, Estupidez e Crime"

A TENTAÇÃO DA ARTE, INSENSATEZ, ESTUPIDEZ E CRIME

Delicio-me quando entro num museu. Adoro absorver, ao máximo, o seu conteúdo, refletir e aprender com o que vejo. É-me indiferente o tipo de museu ou temática abordada, pois em qualquer deles consigo sentir a sua enorme riqueza cultural. É frequente dizer, após cada visita, que saio mais rico, mesmo com a carteira mais leve. Subentende-se, nestas circunstâncias, que o museu terá cumprido a sua missão.

Um dos museus que muito admirei foi o British Museum, uma grande instituição museológica em Londres, com entradas gratuitas. Desde 1759 que delicia quem o visita. Tem peças como a “pedra de roseta”, do Egito Antigo, levada para Londres após a capitulação de Napoleão, quando as suas tropas ocupavam aquele território; ou o conjunto de peças, conhecidas como os “mármores de Elgin”[1], com esculturas da Grécia Antiga, que não deixava de ser um saque a envolver subornos, mesmo que efetuado por um privado e, posteriormente, adquirido pelo governo britânico. Sucessivos governos gregos e egípcios têm feito campanhas para a devolução das obras, mas tudo fica na mesma.

O Museu do Louvre – o mais visitado em todo o mundo – situado em Paris, está cheio de obras riquíssimas, em termos de arte e cultura humana, representando cerca de “oito mil anos da cultura e da civilização, tanto do Oriente como do Ocidente”. Foi muito enriquecido com as peças obtidas nas conquistas napoleónicas. Napoleão sabia bem o que fazia, pois quando preparou a invasão do Egito. Pretensamente, esta teria como objetivo principal exercer maior domínio no Mediterrâneo e cortar a rota usada pelos britânicos para chegarem ao Médio Oriente. No entanto, teve o cuidado de levar consigo aproximadamente 150 cientistas, professores e conhecedores de arte, para fomentar o estudo da antiguidade egípcia e, supostamente, preservar o maior número de peças com valor escultórico e arqueológico. Algumas delas acabariam por ser devolvidas aos países de origem, com a queda do imperador. Certo é que ainda se podem ver várias peças escultóricas assírias, etruscas, egípcias e gregas, entre outras, com vários séculos a.C.

Também Hermann Göring[2], destacado entusiasta do colecionismo, particularmente de arte, foi o impulsionador do plano de Hitler para juntar o maior número possível de obras de arte, que ficariam na posse do estado alemão. Claro, os museus dos países ocupados estiveram nos holofotes do ocupante e do próprio Göring. Este teria acumulado, na sua residência de verão, próximo de Berlim, cerca de 2000 obras de inestimável valor, entre pintura, escultura, peças diversas e tapeçaria, não fosse a guerra ter terminado e ele vir a ser julgado em Nuremberga por “crimes de guerra, onde se incluía a pilhagem e roubo de obras de arte, e outros bens”, além de muitos outros crimes, com inclusão de crimes contra a humanidade. A situação do roubo de obras de arte foi muito bem parodiada na célebre sitcom britânica de sucesso “Allo Allo!”. Retratou a ocupação alemã em França, durante a Segunda Guerra Mundial, em que as tropas invasoras tinham roubado todas as obras de arte da vila de Nouvion, onde o René tinha o café e escondia elementos da resistência. Entre essas obras estava a pintura “A Madonna rendida, com peitos grandes”, que o coronel Von Strohm queria juntar à sua coleção de obras roubadas, apesar de desassossegado pela presença constante do oficial de Gestapo, Herr Flick, que queria encontrar o paradeiro das obras.

Em 2001, Moahmmad Omar, líder do grupo extremista talibã, mandou destruir todas as imagens no Afeganistão, por entender que eram ofensivas. Foram 10 anos, afanosamente, a usar dinamite. Entre essas, estavam duas estátuas gigantes budistas –
Os Budas de Bamiyan –, com cerca de 1500 anos, esculpidas diretamente na rocha de um desfiladeiro. Com 53 e 38 metros de altura, tinham sobrevivo a séculos de guerra.

Em 2003, após a tomada da capital do Iraque pelos militares americanos, que levou à queda do regime de Sadam Hussein, estes não evitaram que iraquianos pilhassem e vandalizassem o Museu Nacional de Bagdad e incendiassem a Biblioteca Nacional, sinal claro de degradação social, económica, moral e até civilizacional de um povo que vivia oprimido. Ainda hoje revivo as imagens obtidas neste museu, relacionadas com a entrada de dezenas de homens e com a directora do museu a tentar afugentar quem pilhava e destruía, com uma coragem a fazer lembrar a freira timorense que afastava os indonésios invasores, esbracejando e gritando “xô… xô…. xô!...”, como se fosse fácil enxotar aquelas “galinhas”. Imagino o sofrimento daquela directora do museu, guardiã de um espólio com vários milhares de anos.   

Quando em 2004 visitei o Museu Nacional de Praga (República Checa), foi-me dito que em agosto de 1968, aquando da invasão por tropas soviéticas para deter a chamada Primavera de Praga, a fachada do belíssimo edifício em estilo neorrenascentista, situado na praça Venceslau, foi bombardeada por tanques, supondo tratar-se do parlamento da ex-Checoslováquia. Recuperada grande parte dos estragos e desconhecendo [eu] o que ficou irremediavelmente perdido, foi outro dos museus que me deliciei a ver, contendo desde objetos pré-históricos a mineralogia, zoologia, antropologia, história, ciências naturais…  

Os protestos contra o presidente e o regime de Hosni Mubarak, em 2011, mesmo perante as armas dos militares, levaram à destruição e vandalização de peças milenárias no Museu Egípcio do Cairo (com decapitação de múmias, como exemplo), mas grupos operacionais sabiam o que lhes interessava e onde estava, tendo efectuado pilhagens, com o intuito de obter lucros, através de marchands e traficantes de arte, o que viria também a acontecer nas estações arqueológicas de Mênfis e Abusir.

Mais recentemente, com a ocupação de um vasto território na Síria e no Iraque, por parte de grupos extremistas do autoproclamado Estado Islâmico, continuou a destruição de preciosidades históricas, com inestimável valor. Aconteceu por todo o lado, particularmente em zonas em que era suposto proteger-se esse património. Foi evidente no Museu de Mossul (Iraque), com a destruição de antiguidades de relevo. Assim como o foi a destruição das ruínas greco-romanas de Palmira (Síria), até aí preservadas e classificada, pela UNESCO, como Património Mundial da Humanidade, tal como outros cinco locais que figuram na lista da UNESCO. Ainda se deram ao cuidado de deixar um vídeo para a posteridade, deixando bem claro o seu fanatismo, através da destruição de estátuas e múmias, assim como da afirmação legendada no vídeo: “Destruímos os ídolos seja onde for, onde quer que os vejamos, destruímo-los, não há mais deus que Alá nesta terra”.

Um olhar histórico, face aos acontecimentos mais recentes, não impede a polémica: as peças preciosas à guarda dos grandes museus mundiais deveriam manter-se, ou ser devolvidos aos respetivos governos e colocados nos seus locais de origem?

Quanto a lucidez, não é preciso fazer um grande esforço, pois sabemos que os símbolos iconográficos destruídos são, tão só, o património arqueológico mais antigo da humanidade. Assim como os bens materiais – incluindo os alheios, mesmo que gostemos muito de arte – não vão connosco para a cova! Como admiro o pensamento lúcido de Alberto Einstein, que afirmou: “Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, no que respeita ao universo, ainda não adquiri a certeza absoluta”.

© Jorge Nuno (2016) 





[1] Alusivo a Lord Elgin, de nome Thomas Bruce, embaixador britânico em Constantinopla [Império Otomano], que em 1801 fomentou as escavações em Atenas e “recolheu” várias esculturas, com o intuito de as preservar (alegando que os otomanos mostravam indiferença pela cultura grega) e terá mandado partir muitas dessas esculturas para as fazer chegar a Inglaterra.
[2] Membro do Partido Nazi e militar de alta patente, a quem Hitler terá dito que seria o seu substituto, caso lhe “acontecesse alguma coisa”.