28/10/2016

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (45) - Crónica: "Acreditar no Bibliomóvel"

ACREDITAR NO BIBLIOMÓVEL

Há poucas semanas fiz um passeio por algumas aldeias raianas do concelho de Bragança. Achei curioso, em pleno século XXI, cruzar-me com duas viaturas pesadas, ambas de caixa tapada com toldo e destinadas ao comércio direto com a população. Uma delas, de matrícula espanhola, vendia fruta e uma outra, de matrícula portuguesa, vendia mercearias, onde não podia faltar o bacalhau, além de outros produtos próprios de uma drogaria. Sei que um pouco abaixo deste concelho, uma cabeleireira usa um furgão que serve de salão de cabeleireiro itinerante. Há outros negócios em curso, de modo a tentar a sua sorte, cujos empreendedores veem os problemas da interioridade e do isolamento das populações como uma oportunidade. Sei da existência da Unidade Móvel de Saúde de Bragança, que foi criada através de uma parceria entre o Município, os Centros de Saúde e a Santa Casa da Misericórdia de Bragança, tendo como finalidade as visitas domiciliárias, prestação de cuidados de enfermagem, acompanhamento de utentes em situação de vulnerabilidade, despiste de situações de risco, vacinação, sessões de esclarecimento, etc.

Lembro-me da distribuição de peixe congelado por todo o país e, claro, de o ver chegar ao interior do país, em furgões preparados para o efeito. Por iniciativa estatal, no final dos anos cinquenta do século passado, foi criada, a empresa SAPP – Serviço de Abastecimento de Peixe ao País, que pretendia introduzir um novo conceito de abastecimento e de alimentação. Foi lançada a campanha “Vamos comprar, congelar e cozinhar peixe congelado”, criando mesmo publicidade através de uns desenhos animados, que passavam na TV a preto e branco, como forma de propagandear o peixe congelado. Foram também elaborados uns livros de banda desenhada com a “Menina Pescadinha”, por forma a abranger as crianças, já que não fazia parte do hábito de consumo nas populações, em qualquer estrato social, e era preciso criar incentivos, com reforço nos mais novos.

Não me esqueço da importância das bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian – uns furgões cinzentos da marca Citroën, embora também os houvesse em cor avermelhada (mas que nunca vi) –. Já andava na escola primária quando este projeto nacional foi lançado. Ansiava pela chegada da carrinha e era um leitor assíduo, com o número máximo de livros que era permitido a cada um. Apesar das orientações que o condutor e bibliotecário tentava dar aos leitores mais jovens, eu não as respeitava e fazia as minhas escolhas como se pertencesse ao público adulto. Sei que com 14, 15, 16 anos já lia clássicos da literatura, como: “Os Irmãos Karamazov”, de Dostoievski; “Guerra e Paz”, de Leão Tolstoi; “Grandes Esperanças”, de Charles Dickens; “O Vermelho e o Preto”, de Stendhal; “Os Miseráveis”, de Victor Hugo; “O Crime do Padre Amaro”, de Eça de Queiroz [que li durante uma noite]; “Esplendores e Misérias das Cortesãs”, de Honoré de Balzac; “Doutor Jivago”, de Boris Pasternak, entre muitos outros.

Se o objetivo deste serviço de bibliotecas itinerantes era o de “promover o gosto pela leitura e elevar o nível cultural dos cidadãos, assentando a sua prática no princípio do livre acesso às estantes, empréstimo domiciliário e gratuitidade do serviço”, não tenho dúvidas da influência deste serviço móvel, e da importância dos muitos autores que li, na minha forma de encarar o mundo, de crescer como pessoa e, mais tarde, ao dedicar-me à escrita. Ficou desde sempre, e para sempre, um enorme gosto pela leitura, pelo que deixo o meu testemunho: comigo o objetivo foi atingido!

Por razões várias, este serviço de bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, viria a ser extinto em 2002. Foram muitas as autarquias a acreditar e  tomarem iniciativa semelhante, que promovesse a leitura e elevasse o nível cultural dos cidadãos (por via da leitura). Para o efeito, renovaram as bibliotecas fixas, tornando-as espaços atrativos, em zonas centrais, de fácil acesso, e criaram as chamadas bibliomóvel, para fazer chegar os livros a zonas mais remotas da sua área jurisdicional. Entre essas autarquias, menciono (por ordem alfabética) as de: Arouca, Aveiro, Coimbra, Loulé, Oliveira de Azeméis, Pombal, Porto de Mós, Proença-a-Nova, Santa Marta de Penaguião, São João da Pesqueira, São Pedro do Sul, Valença. Acredito que poderá haver mais autarquias envolvidas em neste tipo de projeto, mas não tenho problemas em admitir que desconheço.

Em abril de 2016, realizou-se na Universidade de Coimbra uma conferência intitulada “Bibliomóvel no Século XXI. Novos desafios”, a provar que é dada importância ao assunto. Felizmente há gente, com visão, a acreditar no bibliomóvel. Pode mesmo parecer uma coisa do passado, ainda mais por nos situarmos na era das tecnologias. Desengane-se quem pensa que nas zonas raianas, e outras zonas do interior, há livre acesso à internet e até mesmo rede móvel, para uso de um simples telemóvel, pois ou não tem ou é deficiente o sinal recebido. A pretexto do acesso fácil à cultura, por via informática/internet, o fomento da leitura não pode abrandar e tem de prosseguir, para fazer chegar os livros [físicos] às populações desfavorecidas do interior, tal como lá chega, de modo ambulante, a cabeleireira, a enfermeira, o comerciante…

© Jorge Nuno (2016)


Obs.: Crónica publicada na BIRD Magazine (UTAD), em 08-10-2016

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