24/10/2015

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (21) - Em Dia das Nações Unidas

EM DIA DAS NAÇÕES UNIDAS

Estamos perante o Dia das Nações Unidas, precisamente no mesmo dia e mês, em que se comemora os 70 anos da fundação da ONU – Organização das Nações Unidas, a qual foi criada logo após o fim da 2.ª Guerra Mundial. O seu surgimento, ainda debaixo de um forte clima emocional, teria (e ainda tem) como objetivo: “facilitar a cooperação em matéria de direito internacional, segurança internacional, desenvolvimento económico, progresso social, direitos humanos e a realização da paz mundial”, fazendo parte dela praticamente todos os Estados soberanos existentes.

Como forma organizativa, possui: um Secretário-Geral, que é o “rosto visível” da ONU; um Secretariado, responsável pela área administrativa e que promove e fornece os estudos necessários, assim como outras informações relevantes para o funcionamento desta complexa organização mundial; uma Assembleia-Geral, que tem fins deliberativos, onde se tomam, coletivamente, as mais importantes decisões; um Conselho de Segurança, onde era suposto assegurar-se as resoluções de paz e de segurança, já que há um caráter obrigatório no acatamento dessas resoluções; um Conselho Económico e Social, para “fomento da cooperação económica e social e promoção do desenvolvimento dos Estados”, particularmente dos mais carenciados de recursos próprios; um Conselho de Direitos Humanos, com o intuito de “fiscalizar e proteger os direitos humanos”; um Tribunal Internacional de Justiça, que funciona como órgão judicial. A complementar, existe: a OMS – Organização Mundial de Saúde, agência especializada em saúde, que tem por missão “elevar os padrões de saúde de todos os povos; o PMA – Programa Mundial de Alimentação, a maior agência humanitária do mundo, que “fornece alimentos, em média, por ano, a cerca de 90 milhões de pessoas em 80 países, as quais 58 milhões crianças”, sendo muito utilizado na ajuda em situações de catástrofes, que conduzem à existência de refugiados; a ACNUR – Agência das Nações Unidas para Refugiados; a FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, para “aumentar a capacidade da comunidade internacional para, de forma eficaz e coordenada, promover o suporte adequado e sustentável para a Segurança Alimentar e Nutrição global”; a UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância, que promove a “defesa dos direitos das crianças, ajuda a dar resposta às suas necessidades e contribui para o seu desenvolvimento”.

Como organização internacional, com sede em Nova Iorque, parece irrepreensível a intenção com que foi criada. Com esta estrutura, o alcance das suas medidas e os meios envolvidos, bem podíamos estar descansados quanto a um hipotético colapso da Terra, e fazer-se dela um lugar bem melhor para se viver em paz, em segurança, com melhor saúde, educação e pão para todos. Tendo decorrido sete décadas, podemos questionar: “Então, o que tem vindo a falhar?”, uma vez que ligamos o televisor, em horário nobre dos noticiários, e ficamos a par de todas as atrocidades cometidas impunemente pelos “senhores da guerra” e pelos “donos do mundo”, que respondem com: “mais bombas”, “mais extorsão” e “que se lixe os direitos humanos”.

Reconheço o mérito e o trabalho incansável daqueles que, dentro das várias organizações que compõem e dão visibilidade e utilidade à ONU, prestam um inegável serviço aos povos mais desfavorecidos e àqueles que fogem das guerras e da fome. No entanto, não posso deixar de referir o problema a montante e que poderia, atempadamente, evitar ou, pelo menos, não deixar alastrar a escalada dos conflitos bélicos, sejam quais forem as causas que os originam. Sempre me preocupou a constituição e forma de funcionamento do Conselho de Segurança, senão vejamos: “É composto por 15 membros, sendo 5 membros com poder de veto” [EUA, China, França, Reino Unido e Rússia]. Assim, dez desses Estados são eleitos pela Assembleia-Geral, de dois em dois anos. Uma resolução deste órgão, por mais ou menos importante que seja, só “é aprovada se se registar uma maioria de nove”, em quinze possíveis. Mas, pelo Art.º 27.º da Carta das Nações Unidas, basta o voto negativo de um único membro permanente e a resolução será bloqueada, ou seja, simplesmente não será aprovada, e o problema que lhe deu origem continua a arrastar-se e a agravar-se. Isto faz com que os países representados, como membros permanentes, são juízes em causa própria. Especificando, com um caso concreto, e porque é conhecida a importância estratégica (e bélica) dos EUA, da Rússia e China, quase sempre com posições antagónicas em relação aos reais problemas mundiais, aponto a “primavera árabe” e as consequências atuais na Síria. Houve encorajamento, em muitos países do norte de África e do Médio Oriente, contra os “eternos ditadores” que dirigiam os seus países com mão de ferro. Por simpatia e por vontade e rebelião dos povos, foram sucessivamente depostos. Foram encorajados os opositores ao regime sírio, do presidente Bashar Al-Assad, e apercebemo-nos que tiveram treino e receberam armamento dos EUA, além de estes largarem, declaradamente, bombas sobre aquele território, a pretexto do avanço do autoproclamado Estado Islâmico. Por seu lado, a Rússia apoia estrategicamente o presidente sírio – que tudo faz para “silenciar”, à bomba, a oposição –, com a Rússia a intervir com aviões militares, dizendo que destruiu centenas de alvos do Estado Islâmico e ocultando que faz o mesmo com os “rebeldes”, sendo o próprio primeiro-ministro da Rússia, Dmitri Medvédev, a negar publicamente, no canal da estação de televisão pública, esse apoio ao regime sírio. Como se isso não bastasse, é incrível o número de países “aliados” em ações militares no espaço aéreo sírio a despejar bombas, fazendo com que as populações procurem refúgio, e a Europa, mesmo com todos os perigos mortais até lá chegar, continua a ser o destino preferido, enquanto outros ficam em “campos de refugiados” na Turquia, que irá receber da União Europeia 3 mil milhões de euros para “estancar, temporariamente, o fluxo migratório”. Estrategicamente, interessa à Rússia, EUA e China que a União Europeia saia enfraquecida e descaraterizada.

No site do Centro Regional das Nações Unidas pode ler-se que “o Conselho de Segurança não conseguiu aprovar uma resolução que teria ameaçado com sanções contra Damasco [regime de Bashar Al-Assad] devido aos votos negativos dos membros permanentes – Rússia e China”. Parece estar tudo dito. Mas acrescento que se tivesse havido uma ação séria, responsável e coletiva, este conflito estaria mais próximo do fim e evitaria todo este drama e a morte de muita gente inocente, levando ao começo de uma transição política.

Assim, não há OMS, PMA, FAO, ACNUR ou UNICEF que aguente e a ONU acaba numa gigantesca instituição, sem força nem credibilidade. Gostaria de dizer, convictamente: “Parabéns ONU”.



© Jorge Nuno (2015)

Obs.: Crónica escrita para a BIRD Magazine 

09/10/2015

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (20) - A Cigarra Alegre e a Formiga Preguiçosa

A CIGARRA ALEGRE E A FORMIGA PREGUIÇOSA

Vem-me à memória a fábula da cigarra e da formiga, cuja criação é atribuída a Esopo, e que teve relançamento e notoriedade pela mão de La Fontaine, que nos aparece como sendo o verdadeiro autor. Esta fábula era-nos apregoada desde pequenos, mostrando uma cigarra mandriona e uma formiga trabalhadora, tendo em vista apontar-nos o caminho dos valores do trabalho dedicado e da necessidade de poupança, a pensar nos dias menos bons, tudo isto em oposição ao “dolce fare niente”, com consequências desagradáveis para quem escolhe esta segunda via. O meu lado nobre, ou ingénuo, tinha dificuldade em encaixar a ideia de uma formiga castigadora e pouco solidária, perante o pedido de abrigo – com o significado de um pedido de ajuda –, por parte da cigarra, quando chegou o inverno rigoroso.

Já neste milénio, o livro de Luísa Ducla Soares e Pedro Nogueira Ramos, precisamente com o mesmo título mas com um “remake” da história nossa conhecida, viria a ser recomendado pelo Plano Nacional de Leitura para a Educação Pré-Escolar, 1.º e 2.º anos de escolaridade. Só que a versão desta dupla alterou a visão da cigarra foliona, com pouca vontade de trabalhar e mais predisposta a gozar a vida, e apresentou-a como “uma grande artista, que não trabalha porque só consegue olhar e sentir a Natureza que a rodeia”, deixando no ar esta interrogação às crianças leitoras: “Achas que merece ser castigada por isso?”.

Sem dúvida que eu, muito novo, senti na pele a necessidade de encontrar um sentido para a primeira versão da história. Sentia uma admiração enorme ao ver o carreiro incessante de formigas, sempre carregadas, a transportar alimentos. Também não me incomodava nada o “cantar” da cigarra, quando, no verão, me deslocava de bicicleta pelos campos; aliás, até gostava, e só conseguia identificar a presença da cigarra pelo “cantar”. Em tempos de ditadura, tempos difíceis… apercebi-me que a remuneração, como “formiga”, era escassa para quem tinha trabalhos sazonais, seja a retirar areia do rio, na apanha do tomate, ou como aprendiz ocasional numa qualquer oficina de mecânica. Depressa me apercebi que, no papel de “cigarra” – ainda mais por saber que esta só poderia ser cigarra-macho, já que a fêmea não “canta” –, iria recriar-me com a música, teria mais liberdade de movimentos, possibilidade de desfrutar de novos horizontes e de uma maior independência financeira, fazendo-o com muita satisfação pessoal, podendo enveredar por outros voos, com destaque para o prosseguimento dos estudos.

A nossa mente foi sendo formatada, pelo que é fácil aceitarmos como válido aquilo que existe há gerações e é aceite como verdade, mesmo que sejam “histórias da carochinha” e, neste caso, histórias de cigarras e de formigas. Temos, também, uma tendência para atrair tudo o que é negativo – “é o nosso fado”, diz-se e aceita-se candidamente – e, paradoxalmente, até parece que nos sentimos bem assim, como se fosse essa a nossa zona de conforto. Deste modo, desde muito cedo aprendemos a ter limitações, sentindo como natural a escassez de bens, de afetos, de inteligência e de uma visão mais aprofundada dos valores da vida, factos que nos impedem de ir mais longe. Assim, ficamos pela mediania e superficialidade, e quando surge algo diferente do que admitimos com válido, seguindo a cultura e os nossos padrões de pensamento [limitado, como é evidente], simplesmente rejeitamos.

Na Bíblia King James atualizada (Novo Testamento) é referido, algures: “Vai ter com a formiga, ó preguiçoso; olha para os seus caminhos [ou reflete sobre o trabalho que ela realiza] e sê sábio”, numa tentativa, com este exemplo, de promover uma melhor orientação para a espécie humana, que eventualmente tenha tendência para a preguiça. Talvez influenciado por isso, o ex-ministro Miguel Macedo, logo após a gigantesca manifestação de 2012, organizada pelo movimento “Que se lixe a troika”, assumindo as funções de pedagogo afirmou que Portugal não pode ser “um país de cigarras e poucas formigas”, o que levou à indignação dos mais atentos e que trabalham arduamente, sendo que alguém não resistiu à tentação de escrever, sob forma de resposta: “é fácil ser formiga-rainha na hora de receber € 1400 de subsídio de deslocação, quando efetivamente não se vive deslocado do formigueiro”.

E se lhe dissessem que o mito da formiga trabalhadora caiu por terra? Que se comprovou que cerca de metade de várias colónias de formigas são preguiçosas? A fonte é a revista R&D [Research & Development], que publicou um artigo que dava conta de um estudo efetuado por um grupo de investigadores da Universidade de Tucson, Arizona, EUA, tendo Daniel Charbonneau como responsável da investigação. Fazendo aqui uma descrição sumária, este estudo baseia-se na identificação e observação de 225 formigas “distribuídas por cinco colónias artificiais diferentes, num habitat simulado, com comida e ‘material de construção’ para as formigas usarem”, tendo, naturalmente, um sistema para as filmar. Ao divulgar as conclusões do estudo, afirmou o chefe desta equipa: “Quando começamos a investigar as sociedades compostas por insetos, percebemos que estas [as formigas] também têm os seus problemas: metade delas estão apenas a andar de um lado para o outro enquanto as outras fazem todo o trabalho”. Arrisca uma possível explicação, apontando, numa  semelhança com os humanos, que “as formigas servem para substituir outras que entretanto morrem ou então só começam a trabalhar quando o volume dentro da colónia aumenta”, acrescentando que “é também possível que as formigas inativas estejam a ser egoístas e evitem as tarefas mais perigosas enquanto usam os recursos da colónia para investir na sua reprodução”. Para se ser mais preciso, o estudo indica que 34 formigas fizeram o trabalho doméstico, 26 fizeram trabalhos externos, 62 eram generalistas e 103 eram “completamente ociosas”, ficando ainda a hipótese no ar que este último grupo poderia “constituir uma reserva quando fosse necessário atacar ou defender o formigueiro” ou que “algumas formigas poderiam não estar a par das tarefas e ficam a circular para evitar o trabalho”.
Também na Europa, a entomologista Danielle Mersch, da Universidade de Lausanne, Suíça, chefiou uma equipa de investigação relacionada com a atividade das formigas, concluindo que estas “organizam-se segundo as necessidades coletivas” e que “quando se encontram isoladas são na verdade, preguiçosas”, dando conta dessas conclusões na revista “Science”. 

Tal como foi deixada a interrogação às crianças leitoras, também eu, como autor desta crónica, pergunto ao leitor que a lê: “Acha que a formiga-operária, ao esquivar-se de transportar até 50 vezes o seu peso merece ser castigada por isso?”; “Não deveria servir de exemplo aos humanos, quando numa civilização moderna, incompreensivelmente, estão a ser espoliados dos seus direitos, obrigados a mais tempo de trabalho e a redução das condições de trabalho e de salário?
Como é bom ter-se uma atividade que permita contribuir para o bem comum, mas dando uma manifesta satisfação pessoal no papel de “formiga-operária”, desenvolvendo-a com a descontração e alegria de uma “cigarra-macho” no verão!


© Jorge Nuno (2015)