25/12/2015

Não Importa

NÃO IMPORTA

Não me importa a clorofila das árvores
E os fenómenos de fotossíntese,
Apenas o espanto daquele verde.

Nem por que a gravidade me atrai,
Como a puxar-me… querendo prender-me,
Se me liberto em sentido contrário.

Nem do porquê daquele azul do céu,
Do tom âmbar, vermelhão ou rosado,
Se estou grato perante tal esplendor.

Não importa estar numa noite escura
Se a escuridão é equalizador
E muda parâmetros aos meus sentidos.

Não importa que me vejam disperso
Se sei que realinho a consciência,
Atento e sem bluffs sensoriais.

Não importa que me achem cegueta
Quando consigo ver, em meu redor,
Requinte da beleza no banal.

Não importa que me julguem matéria
E, na cova, serei apenas pó,
Se eu sou energia em movimento.

Raios!… Digam então por que me indigno
Quando, nesta caminhada da vida,
Tropeço em tanta estupidez humana!

© Jorge Nuno (2015)        

19/12/2015

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (25) - Eternas Coboiadas

ETERNAS COBOIADAS

Mesmo no final dos anos 60, no salão de baile de uma coletividade nos arredores da cidade de Coimbra, enquanto no palco o grupo musical (de que eu fazia parte) proporcionava uns momentos de descontração, através da dança, reparei que se tinha gerado uma enorme confusão, com empurrões e alguns socos, a que se juntou mais uns quantos “pugilistas” de ocasião, não para separar aqueles dois jovens engalfinhados pelas emoções (leia-se ciúmes) e algum álcool, mas sim para “ajudar à festa”. Com olhares cúmplices e alguns acenos de cabeça, acabámos de imediato aquele slow, para desagrado dos casais que se queriam manter agarradinhos. Quando era suposto aproveitar-se a ocasião para um apelo à ordem na sala, com recurso a um dos microfones, iniciei, sozinho, com a minha irreverência ou falta de sensatez, o tema de abertura de Bonanza – a popular série de televisão, de cowboys, com personagens simpáticas, onde predominava a lei do oeste –. De imediato, acompanharam-me os restantes membros do grupo, mesmo sem qualquer ensaio. Sinceramente, nunca vi uma briga acabar tão rápido! O problema foi a sala em peso ficar a protestar contra os músicos, mas isso resolveu-se bem com… outro slow. Se dúvidas houvesse, ficou provado que a música tem um efeito benéfico no comportamento das pessoas.


Mas lembro-me de muitas outras coboiadas – de outra índole –, e desta vez bem mais recentes, que passo a relatar.

Registo duas ocorrências no parlamento de Taiwan, em 2013, e com a diferença de dois meses, em que houve lutas violentas e imperava a força muscular dos socos e pontapés, denotando conhecimento de artes marciais, sempre com o envolvimento de deputados apoiantes do partido do governo e deputados dos três partidos da oposição. Uma, por causa da votação que daria lugar a um referendo que permitiria a construção da quarta central nuclear na ilha e, outra, ao pretender-se “mexer” numa taxa sobre transações comerciais, aprovada um ano antes.

No Knesset, parlamento israelita, tendo sete partidos com assento parlamentar, entre trabalhistas, sociais-democratas, ultranacionalistas (2) e árabes (3), o ambiente é permanentemente escaldante, embora me tenham dito – quando estive em Jerusalém, no exterior do edifício – que era o lugar mais frio do planeta, por ter “120 [deputados] abaixo do zero”! Motivações não faltam para posições extremadas e imagine-se o que foi, em 2014, o debate até à aprovação da “Lei da Governabilidade”, que como o próprio nome indica, visa contribuir para a governabilidade do país, e exige um maior número de votos para que um partido participe no “jogo político”, ficando também a ideia de haver a intenção de prejudicar as três formações políticas que representam os cidadãos árabes (a menos que se unissem).


No parlamento japonês, em 17 de setembro de 2015, também houve perda de compostura. Os deputados da oposição tentaram impedir, pela força braçal, a aprovação de um projeto de lei que permitiria ao país, pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, enviar tropas para conflitos armados no exterior, deixando de ter uma Constituição pacifista. Esta sessão, com o propósito da oposição poder defender o ideal pacifista, foi tudo… menos pacífica.

No Brasil, em 10 de dezembro de 2015, houve “cenas tristes” com deputados, pasme-se, do Conselho de Ética, a gerar muita confusão, com muitos empurrões [há quem diga, alguns tabefes], como forma de defender ou impedir o afastamento de Eduardo Cunha do cargo de presidente da Câmara dos Deputados, até ao seu julgamento [terá sido apanhado no caso Lava Jato, com indícios de corrupção e lavagem de dinheiro, à data de 20 de agosto de 2015]. Nem valeu o apelo do presidente do Conselho para que os deputados se comportassem com moderação e ainda mais por se estar no Conselho de Ética. Como se isto não bastasse, o deputado Manoel Júnior, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro, pelo Rio de Janeiro, terá alegado em defesa de Eduardo Cunha: “Gostaria de saber quem foi a cabeça iluminada que pensou nisso [o afastamento]. Se foi por ter processo no Supremo, mais de 150 parlamentares teriam que ser afastados”. Agora sou eu que digo: “Valeu, meu irmão!”.   

No parlamento do Kosovo, a oposição assegurada pelo partido Vetëvendosje [Autodeterminação] liderou (e lidera) o movimento de protesto para “exigir a renúncia dos acordos sobre a normalização das relações com a Sérvia”, pois querem que a independência unilateral, proclamada em 2008, seja uma realidade aceite pela Sérvia, assim como também exige o fim do acordo, concluído este ano com o Montenegro, acerca das fronteiras de ambos os territórios. Assim, como forma de bloquear os trabalhos do parlamento kosovar, por diversas vezes, deputados da oposição lançaram gás lacrimogéneo, ovos e usaram apitos para impedir o normal funcionamento das sessões. Em 14 de dezembro de 2015, um parlamentar voltou a introduzir e a despoletar uma granada de gás lacrimogéneo no parlamento, forçando, mais uma vez, a interrupção dos trabalhos.

No parlamento da Ucrânia, em 15 de dezembro de 2015, registaram-se cenas de pancadaria entre deputados apoiantes do primeiro-ministro e apoiantes de Poroshenko [presidente da Ucrânia]. O primeiro-ministro foi interrompido por um deputado da oposição, que lhe levou um ramo de flores, agarrou nele e retirou-o à força do púlpito do parlamento. Claro, seguiram-se os habituais empurrões, murros e até puxões de cabelo (de que o primeiro-ministro Arseniy Yatsenyuk se livrou… por ser careca!). Sobre este caso fica a ideia: “ Se alguém te oferecer flores, é porque te quer levar ao colo!”.

Bem… todos estes relatos fazem com que os deputados portugueses pareçam uns piegas, copinhos de leite, em que o maior desconforto atual será a azia de alguns, já que parece não haver dúvidas quanto à manifesta indiferença com que ouviram os comentários do Paulo Morais, na qualidade de candidato à presidência da República, a prometer que irá forçar o parlamento a legislar sobre a corrupção e a dizer que o maior antro de corrupção no país é a própria Assembleia da República (AR). Mas se alguma vez as coisas azedarem, der mesmo para o torto, e os deputados acharem por bem resolver as divergências à trolhada, então a AR deverá ter um impecável sistema de som, sem falhas, para que de imediato se possa fazer ecoar o tema da série Bonanza. Pensando melhor, porque há um número apreciável de deputados jovens (nascidos muitos anos depois da série ter terminado), e até para aprenderem como custa engolir mentiras, deverá ser anunciada a banda Xutos e Pontapés, para ficarem com as antenas no ar, e ser passada a canção Só à Estalada, da Ruth Marlene. Será gratificante ver como os ânimos serenam logo!

© Jorge Nuno (2015)
   



05/12/2015

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (24) - Ser Voluntário, Ser Solidário

SER VOLUNTÁRIO, SER SOLIDÁRIO

Esta é a minha 24.ª crónica quinzenal, prestes a cumprir-se um ano de colaboração voluntária com a BIRD Magazine. É curioso o facto de eu não sentir falta de tema, sempre que me coloco em frente ao meu PC, mesmo que parta sem tema, como acontece tantas vezes. Desta vez, poderia: brincar com a desconfortável azia provocada pela mudança nas cadeiras do poder em Portugal, com as tão apregoadas “costas do povo” e com a “inevitabilidade de se aceitar a dura realidade dos factos”; ironizar com os discursos dos líderes dos países mais poluidores do planeta, em plena Cimeira do Clima, em Paris e que, com alguma hipocrisia, tentam demonstrar preocupação com as alterações climáticas e com a dificuldade em encontrar estratégias a adotar, na mesma altura em que têm aviões dos seus países a bombardear, intensamente, poços e refinarias petrolíferas, paióis de munições e outros alvos suscetíveis de causar graves danos ambientais; ou outro tema, bem mais agradável, como realçar e louvar as políticas do reino do Butão, designado como o “reino da felicidade”, que faz deste pequeno país, a leste dos Himalaias, o menos poluente na Terra, a fazer-me lembrar o personagem central do meu romance As Animadas Tertúlias de Um Homem Inquieto – o Filó – com os seus comentários junto de amigos, a propósito do Butão (quando, provavelmente, esse rol de amigos até desconhecia que houvesse um país com este nome): “(…) o rei declarou que a política do reino deve estar ligada ao bem-estar das pessoas e, neste país, parecem levar muito a sério a ‘felicidade interna bruta’, que será tão importante como o PIB, onde a economia e o crescimento económico é apenas uma parte da equação. Cá, fica-se com a ideia que só interessam os números, consolidação de orçamentos, estatísticas, rácios financeiros… as pessoas são completamente esquecidas. Vive-se numa era de capitalismo desumano… sem compaixão (…)”.

Como facilmente se vê, haveria aqui muita matéria-prima para escrever esta crónica e, com exceção das partes mais sérias, acredito que até seria possível fazer soltar uns sorrisos, sempre bem-vindos, para adoçar a vida. Mas não. Intimamente, prefiro abordar o voluntariado e a sua importância na sociedade, mesmo conhecedor do risco de banalização da comemoração “imposta”, com natureza diversa, dia após dia e ao longo de todo o ano, como chamada de atenção para determinado assunto ou problema. É que hoje está a decorrer o Dia Internacional do Voluntário, dia que foi instituído pela ONU em 1985, com o objetivo de “fazer com que, ao redor do mundo, sejam promovidas ações de voluntariado em todas as esferas da sociedade”. Segundo o dicionário – que consulto frequentemente –, a palavra “voluntário” significa: “que se faz de livre vontade” (…) “que procede espontaneamente” (…) “pessoa que se compromete a cumprir determinada tarefa ou função sem ser obrigada a isso”. Para a ONU, “o voluntário é o jovem ou o adulto que, devido ao seu interesse pessoal e ao seu espírito cívico, dedica parte do seu tempo, sem remuneração alguma, a diversas formas de atividades, organizadas ou não, de bem-estar social, ou outros campos (…)”. Resumidamente, é dito e sabido que “os voluntários são pessoas ou grupos que, sem remuneração, ajudam a melhorar a qualidade de vida do planeta. Dedicam parte da sua vida para ajudar a resolver problemas da sua região, indivíduos que se sensibilizam com as causas sociais e estão dispostos a dar alegria, carinho e amor para quem está a precisar de apenas sorrir”.
Relacionado com o voluntariado, a ONU, no ano 2000, estabeleceu 8 objetivos do milénio:
1 – erradicar a extrema pobreza e a fome;
2 – atingir o ensino básico universal;
3 – promover a igualdade entre sexos e a autonomia das mulheres;
4 – reduzir a mortalidade infantil;
5 – melhorar a saúde materna;
6 -  combater o HIV, a malária e outras doenças;
7 – garantir a sustentabilidade ambiental;
8 – estabelecer uma Parceria Mundial para o Desenvolvimento.

Recomendava Osho (filósofo oriental): “Use as suas energias para tornar um mundo mais belo, mais poético e mais saudável”. Os voluntários enquadram-se nesta filosofia de vida. É evidente que nem é necessário ter elevadas qualificações, pois qualquer pessoa pode ser voluntária. Numa breve retrospetiva, constatei que mais de metade da minha vida exerci voluntariado no associativismo, particularmente no juvenil, com promoção sistemática de atividades e eventos culturais e desportivos, culminado com as minhas funções docentes numa universidade sénior. Nestas funções, tenho consciência que, com dedicação e criatividade, doei energia e contribuí, com o meu entusiasmo e algumas capacidades, para que pessoas seniores procurassem não falhar aqueles momentos, que valorizavam. Como retorno, tive a sensação de uma experiência gratificante e enriquecedora, devido à influência positiva no contacto humano e na partilha do conhecimento, que fez realçar o valor da amizade e o interesse da socialização, o que me deu uma enorme satisfação pessoal, reforçada pela reconhecida utilidade social de esta atividade.

Li, algures, que “o primeiro passo para a cidadania plena é o compromisso com o voluntariado” e, in Cadernos de Lanzarote [1995], de José Saramago, com a acutilância que lhe era conhecida: “Creio no direito à solidariedade e no dever de ser solidário. Creio que não há nenhuma incompatibilidade entre a firmeza dos valores próprios e o respeito pelos valores alheios. Somos todos feitos da mesma carne sofrente. Mas também creio que ainda nos falta muito para chegarmos a ser verdadeiramente humanos. Se o seremos alguma vez (…)”.

O meu lado humanista e poético leva-me a acreditar nos homens de boa vontade como forma de transformar a sociedade, começando pela ajuda desinteressada ao próximo. O meu “bem-haja” a todos aqueles que dedicam algumas horas semanais com gestos de cidadania ativa, sem estar à espera de algo em troca.

© Jorge Nuno (2015)  


21/11/2015

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (23) - Televisão - Essa Caixa Mágica

TELEVISÃO, ESSA CAIXA MÁGICA

Comemora-se, na presente data, o Dia Mundial da Televisão, instituído pelas Nações Unidas em 1996. A televisão faz-me ter presente a imagem do café do Bafeta, cujo proprietário, corcunda, era uma figura castiça e manhosa, mas com a ousadia suficiente para adquirir o primeiro televisor da localidade – um caixote enorme com imagem a preto e branco, pois claro –. Estávamos em 1957, ano em que teve início a televisão em Portugal. Havia um canal único e bem controlado, em tempo de ditadura. Como o estabelecimento, tipo tasca, era relativamente pequeno, assim como eu (pois ainda frequentava a escola primária), ficávamos em pé, do lado de fora, tal como era frequente na capela, nas cerimónias religiosas em dias festivos. Só que para ver a televisão a paixão e o fervor seria maior, pois até púnhamo-nos em bicos de pés, a acotovelar-nos no exterior e a espreitar pelas duas pequenas janelas, para tentar ver alguma coisa.

Foi aí, no café do Bafeta, que tive acesso pela primeira vez às artes de palco, tudo em direto, deixando-me fascinado. Foi aí que vi as primeiras peças de teatro e filmes portugueses, os quais foram repetidos à exaustão, e que, estranhamente, eram sempre revistos com agrado. Relembro “Aniki Bóbó”, de Manoel de Oliveira, e uma série de comédias bem-sucedidas como o “Pátio das Cantigas”, o “Leão da Estrela”, “A Canção de Lisboa”, a “Aldeia da Roupa Branca”, a “Maria Papoila” e “O Costa do Castelo”, de que faziam parte grandes atrizes e atores, como Vasco Santana, António Silva, Ribeirinho, Milu, Laura Alves, Mirita Casimiro, Beatriz Costa, Curado Ribeiro (…).

Mais tarde, na Casa do Povo, e com uma enorme plateia, sentada, a olhar para aquela caixa mágica, assisti ao mais emocionante jogo de futebol de que tenho memória. Decorreu em Londres, no ano de 1966, e tratou-se do célebre Coreia do Norte – Portugal, na estreia de ambos num campeonato mundial. Portugal perdia por 3 – 0 e viria a ganhar, heroicamente, por 3-5, com 4 golos do saudoso Eusébio, que se sagrou o melhor goleador da prova e contribuiu para que Portugal chegasse ao 3.º lugar, ao eliminar a União Soviética, que tinha o melhor guarda-redes do mundo – Yashin –. Já naquela altura havia maluqueira pelo futebol, a ponto de o meu avô paterno, que trazia trabalhadores à jorna no campo, dispensá-los para verem este jogo, pagando-lhes como se estivessem a trabalhar. Nesse mesmo ano, teria a possibilidade de ver a peça “As Árvores Morrem de Pé, com a Palmira Bastos, na sua bela idade de 90 anos, a ter uma magnífica representação e a deixar-nos a frase que ficou célebre: “Morta por dentro, mas de pé, como as árvores”, a qual serviu de inspiração a muitas mulheres deste país, numa altura em que estas não eram minimamente valorizadas na sociedade.

Outro programa que marcou o panorama televisivo (à época, duplamente cinzentão) foi o primeiro talk show português e uma lufada de ar fresco – o Zip-Zip –, que teve apresentação de Raul Solnado, Fialho Gouveia e Carlos Cruz. De igual modo, marcou-me a mim também, mesmo ainda sem saber que os conteúdos eram previamente negociados com a PIDE, e que entre os espetadores que assistiam à gravação no Teatro Villaret estava sempre um agente da mesma polícia política. Apesar das restrições, a crítica subliminar, feita através de este programa, serviu para alertar muitas consciências.

Em 1968 surgiu um segundo canal da RTP. Apesar de ele, durante muito tempo, ter uma fatia de mercado na ordem dos 4%, eu fazia parte de uma minoria que o privilegiava, para ver programas de índole cultural.

Em 1975, ano em que se iniciaram as emissões a cores, já se respirava liberdade e os programas refletiam isso.

Nos anos 80, quem passava os “domingos de alcatifa” fez de “O Passeio dos Alegres” um programa de sucesso. Era um programa de entretenimento apresentado pelo Júlio Isidro, que lançou imensos jovens talentosos, hoje artistas consagrados ou… esquecidos. Entretanto, o Herman José fazia sucesso com programas humorísticos, com destaque para o “boneco” criado por si – o Diácono Remédios –, a fazer-nos lembrar, com sorrisos, a censura de má memória. Também a Ivone Silva e o Camilo de Oliveira faziam furor com “Sabadabadu”, um programa de humor que teve curta duração, mas que se via com muito agrado, devido ao talento de ambos.

Em 1992 surgiu a primeira estação de televisão privada em Portugal – a SIC –. No ano seguinte, foi a vez da TVI. Dai para cá deu-se uma evolução espantosa, mas com as seguintes ressalvas: o falhanço da alteração do sinal analógico pelo sinal digital, através da “imposição” da TDT – Televisão Digital Terrestre; o evidente exagero de muitos programas que recorrem à mesma estratégia de autofinanciamento, com recurso a chamadas de valor acrescentado; os enormes intervalos, cheio de publicidade, que fazem esquecer que programa estava ser transmitido; o baixo nível de programas [incompreensivelmente] de grande audiência, como os reality shows, pelo voyerismo, ou os programas musicais no exterior, em que se valoriza a mediocridade; todos os canais generalistas têm um número anormal de rubricas com culinária, numa altura em que falta o pão em muita mesa; as imagens com os horrores da humanidade, em direto, levando à banalização, à indiferença… estendendo, no tempo, as notícias sem novidades, numa luta pela liderança de audiências; os inúmeros “fazedores de opinião”, pagos principescamente, com a estratégia de influenciar; os julgamentos na “praça pública”, com revelação de processos judiciais em segredo de justiça; os elevados riscos para a saúde física e mental das pessoas, e particularmente as crianças, devido ao número excessivo de horas em frente ao televisor. Mas falava de “evolução espantosa”. Num curto espaço de tempo, passou-se de apenas quatro para uma “infinidade” de canais. As velhas antenas nos telhados foram substituídas pelas antenas parabólicas, para logo caírem em desuso. Surgiu o sistema por cabo coaxial, para logo aparecer o de fibra ótica. Hoje, os pacotes com 200 ou mais canais [pagos, naturalmente] estão associados a uma box, que permite selecionar: canais generalistas; informação; desporto; entretenimento; programas infantis; filmes e séries; estilos de vida (moda, culinária…); documentários; música; estações de rádio; sistemas de gravação automática e manual; sistema de videoclube; apps (jogos, compras, youtube…); área do cliente (para gestão dos serviços adquiridos ou a adquirir). Como se isto não bastasse, há televisões que permitem imagem em HD, 3D e agora Ultra HD e, com uma smart tv, tem-se acesso à internet e pode usar-se com as funções de um computador. Apesar de se ver televisão nos smartphones, na rua ou em qualquer lugar, sem fios, e ter-se acesso a programas emitidos até há 7 dias atrás, tenho noção que dentro de 10 anos, se esta crónica voltar a ser lida, alguém irá sorrir por toda esta tecnologia/ maravilha se encontrar obsoleta.

Bem… não sei se será bem assim. A ser como no filme “Idiocracy”, traduzido para “Terra de Idiotas”, o desfecho será mesmo bem diferente. Trata-se de um filme em HD, que passou recentemente num canal de televisão, englobado no tal pacote. Resumidamente, o argumento retrata um homem banal, talvez pouco inteligente, com a tarefa de um bibliotecário nas instalações de uma unidade militar, cujo local de trabalho mais parecia a de um arquivo morto. O personagem principal, Joe Bauers, encarnado pelo ator Luke Wilson, vê-se envolvido num projeto militar de hibernação, na expetativa de ser “acordado” ao fim de um ano. Só que o projeto viria a ser abandonado e o bibliotecário esquecido. O personagem surge uns séculos depois, no ano de 2505… Eu gosto de humor inteligente, e reconheço que neste havia idiotice a mais para o meu [bom] gosto. Confesso que senti um forte impulso para desistir de ver o filme e, simplesmente, mudar de canal ou ir ler, como tantas vezes faço. Mas não, resisti, pela curiosidade, e fui mesmo até ao fim. No prosseguimento do filme… o Joe Bauers deu-se conta que estava perante uma população sem neurónios, completamente alienada e estupidificada pela televisão, o que fazia dele o indivíduo mais inteligente de todos, e viria a resolver muitas das trapalhadas em que os outros (e ele próprio) estavam metidos. Estando eu bem longe de aplicar um rótulo de “qualidade” neste filme, mesmo na presunção de ser uma caricatura, não deixa o mesmo de nos alertar para os perigos da alienação através da televisão. E pelo jeito que isto leva!…

© Jorge Nuno (2015)

07/11/2015

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (22) - Em Força... na Terceira Idade

EM FORÇA… NA TERCEIRA IDADE

Há poucos dias atingi, oficialmente, a chamada terceira idade. Pode parecer estranho e soar a falso, mas esse facto encheu-me de uma genuína alegria. Durante alguns anos, como professor numa Universidade Sénior, encorajei os meus alunos a um envelhecimento ativo, por acreditar nas suas potencialidades e tendo em vista, sempre, a melhoria da qualidade de vida. Numa sociedade inclusiva, como entendo que deverá ser a nossa, devem ser “dadas” oportunidades aos idosos. E na eventual ausência dos convenientes apoios formais, essas oportunidades devem ser “conquistadas”, a partir das bases, por iniciativa dos próprios. Há que cuidar da manutenção da saúde física e mental, como também de prolongar a autonomia e independência, mantendo ou recriando, cada um, os seus objetivos – bem pessoais –, de acordo com as suas tendências, capacidades e talentos.

Hoje, sinto que é isso mesmo que procuro fazer. Se apregoei a “aprendizagem ao longo da vida” e estive envolvido em projetos nacionais que tornaram isso possível a muitos cidadãos, hoje mantenho essa postura de entusiasta pela aprendizagem, apesar da minha condição de aposentado. Se o culto pela leitura esteve sempre presente na minha vida, hoje está mais do que nunca, pela minha maior disponibilidade. Tenho sobre a minha secretária dois livros, que vou intervalando na leitura, além da permanente consulta do dicionário. Um deles é “Um Cérebro Sempre Jovem”, de Tony Buzan, em que na introdução, pode ler-se algo surpreendente: Pare de pensar que cada ano que passa o aproxima mais dos seus terríveis “momentos seniores” (…). É um erro completo partir do princípio de que o seu cérebro se deteriora com a idade: existem dados científicos que o comprovam. A verdade é que tem de cuidar do seu cérebro, tal como qualquer outra parte do seu corpo, para o manter em bom funcionamento (…). Mantenha o seu cérebro ágil e em forma, e ele terá um desempenho tão bom quanto pretende. Conseguirá, de facto, ser capaz de o manter à prova de idade.    

Vi reforçada a perceção, que sempre me tinha acompanhado, de que deveria fazer um bom uso do cérebro, a começar por ter que o exercitar sem descanso. Foi nesta perspetiva que optei, há uns anos, por aderir ao “novo acordo ortográfico”, mesmo sabendo da discordância dos puristas da língua e de todos aqueles acomodados, pouco ou nada sensíveis a qualquer mudança, seja ela qual for, e do imenso investimento e embaraço pessoal que isso implicaria, para mim. Comprei um novo dicionário, com as palavras escritas “corretamente” segundo o novo acordo. Ao mesmo tempo, adquiri o livro “Saber Usar a Nova Ortografia”, de Edite Estrela, Maria José Leitão e Maria Almira Soares. Como sempre fui um homem de ação, escrevi, escrevi, escrevi… e de uma pessoa que estava numa posição confortável, passei a ser uma das “pessoas que são constantemente assaltadas pelas dúvidas linguísticas mais elementares” e pelas dúvidas relacionadas com a capacidade do meu cérebro, que aparentava perder qualidades. É esta uma das razões do aparecimento do meu segundo romance, que intitulei “O Milagre da Memória” (ainda não editado). E também do aparecimento do segundo livro, que adquiri e está atualmente, de forma permanente, em cima da minha secretária – “500 Erros Mais Comuns na Língua Portuguesa”, de Sandra Duarte Tavares –, que tem um curto e delicioso prefácio de Ricardo Araújo Pereira, e que aqui deixo um breve excerto: A minha profissão é escrever textos humorísticos. (Interpretá-los é apenas um acidente, muitas vezes na dupla acepção de acaso e desastre). O meu trabalho é escrever palavras num papel e esperar que elas façam rir alguém. Ou seja: tentar provocar uma convulsão física violenta noutra pessoa. Trata-se de procurar produzir em alguém o efeito das cócegas, mas sem lhe tocar. Os erros de linguagem, a menos que sejam propositados, dificultam-me a vida. Falar ou escrever com erros equivale, no meu caso, a beijar mal, ou a fazer cócegas que magoam. Por isso, junto da secretária onde trabalho, tenho vários livros de pessoas que me ajudam a parecer um pouco menos analfabeto (…).       

Mais uma vez, sinto – mesmo que conte apenas a intenção de me instruir e parecer “menos analfabeto” – que estarei no bom caminho. Sinto também que a minha ousadia, experiência e alegria de viver, como sénior, me está a dar um retorno fabuloso. Receber uma imensidão de mensagens e muitos telefonemas, por parte de familiares e de amigos, a felicitar-me em dia de aniversário e em que entro em força… na terceira idade, são entendidas como uma bênção – a de estar rodeado de amigos –. Fiz uns cálculos rápidos (lá está… é preciso exercitar o cérebro!) e cheguei à conclusão de necessitaria de cerca de 8 horas para responder a todas essas mensagens, caso gastasse 2 minutos com cada. Eu sei que "para os amigos há sempre tempo" (mensagem escrita num relógio de sol existente em Portalegre) e, aos poucos, levei uma semana a responder a cada um, e espero que a memória não me tenha atraiçoado. Foi mesmo um dia inesquecível. Com tantas amizades a felicitar-me – o que fez aumentar o meu bem-estar –, e com todo o meu empenhamento em dar bom uso ao cérebro, lembrei-me do programa de humor acutilante do Ricardo Araújo Pereira, que surgiu por altura da última campanha eleitoral para as Legislativas, intitulado “É Tudo Muito Bonito, Mas”. É que três acontecimentos neste dia de aniversário, em que tudo é [ou parece] muito bonito, mas há sempre um “mas”… tornaram mesmo o dia inevitavelmente inesquecível.
Caso 1 - Ao sair da garagem com o carro, estacionei por breves instantes no exterior. Logo a seguir, três “idosos” (provavelmente um pouco menos idosos que eu próprio), com ar quem vem à feira da cidade, mesmo que não seja dia de feira, olhavam insistentemente para a minha viatura e para mim, com um sorriso ainda mais enigmático do que a da Gioconda. “Devem estar a confundir-me com o anterior presidente da câmara”, pensei e sorri-lhes, o mais educadamente que consegui. Pouco depois, quando fui à mala do carro, descobri que tinha um dos pneus traseiros completamente em cima do passeio, excessivamente alto. Com é possível não ter dado por isso?
Caso 2 – Resolvi oferecer uma prenda a mim mesmo – um candeeiro flexível para a minha secretária, substituindo o bonito candeeiro existente, mas pouco prático –. Antecipadamente, tinha recortado um bocado do panfleto, com o produto, de uma conhecida cadeia de hipermercados. Não encontrando o produto, dirigi-me ao responsável de loja e mostrei-lhe o recorte, para que me dissesse onde o poderia encontrar. Olha espantado para o recorte e diz: “Mas hoje não é quinta-feira. Tem por trás alguma coisa do “Halloween”? – virou e tinha mesmo. Havia concordância, o que o deixa ainda mais confuso, e é então que se lembra de perguntar, como quem já sabia a resposta, e fê-lo com um sorriso semelhante ao dos citados “idosos”: “Bô… não me diga que guardou o jornal do ano passado?
Como é possível isto ter acontecido?
Caso 3 – Apesar de estar um céu muito nebuloso e escurecer mais cedo, resolvi passar o resto do dia em contacto com a natureza e fui até ao Parque Natural de Montesinho, onde se estava perante uma paisagem protegida, deslumbrante e incomum, pela arborização e tons ocre a castanho avermelhado das folhas, em pleno outono. Aproximando-se a hora de almoçar, fui à bonita aldeia (recuperada) de Montesinho, para um repasto com gastronomia regional. Como não via ninguém e o restaurante da aldeia estava fechado, dirigi-me à casa do Povo, onde me disseram: “Agora é tempo de castanha e eles foram por ela!”. Antecipo, mentalmente, o “como é possível?”. Sim, como é possível, uma pessoa com esta experiência de vida, acreditar que o único restaurante da aldeia estava à sua [minha] espera… em tempo de fartura de castanhas? Em vez de um repasto típico, numa aldeia transmontana bem caraterística, acabei no centro comercial da cidade (único sítio onde se poderia encontrar um “restaurante” aberto, de uma qualquer cadeia de fast food) a comer um “calzone italiano”, já por volta das 16h30, o que representaria 17h30, se não tivesse havido a mudança da hora no dia anterior.

Dia inesquecível, a mostrar que estou em força… na terceira idade, e que, apesar de tudo, a minha experiência de vida valorizou, mantendo em alta o lado positivo.


© Jorge Nuno (2015)

24/10/2015

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (21) - Em Dia das Nações Unidas

EM DIA DAS NAÇÕES UNIDAS

Estamos perante o Dia das Nações Unidas, precisamente no mesmo dia e mês, em que se comemora os 70 anos da fundação da ONU – Organização das Nações Unidas, a qual foi criada logo após o fim da 2.ª Guerra Mundial. O seu surgimento, ainda debaixo de um forte clima emocional, teria (e ainda tem) como objetivo: “facilitar a cooperação em matéria de direito internacional, segurança internacional, desenvolvimento económico, progresso social, direitos humanos e a realização da paz mundial”, fazendo parte dela praticamente todos os Estados soberanos existentes.

Como forma organizativa, possui: um Secretário-Geral, que é o “rosto visível” da ONU; um Secretariado, responsável pela área administrativa e que promove e fornece os estudos necessários, assim como outras informações relevantes para o funcionamento desta complexa organização mundial; uma Assembleia-Geral, que tem fins deliberativos, onde se tomam, coletivamente, as mais importantes decisões; um Conselho de Segurança, onde era suposto assegurar-se as resoluções de paz e de segurança, já que há um caráter obrigatório no acatamento dessas resoluções; um Conselho Económico e Social, para “fomento da cooperação económica e social e promoção do desenvolvimento dos Estados”, particularmente dos mais carenciados de recursos próprios; um Conselho de Direitos Humanos, com o intuito de “fiscalizar e proteger os direitos humanos”; um Tribunal Internacional de Justiça, que funciona como órgão judicial. A complementar, existe: a OMS – Organização Mundial de Saúde, agência especializada em saúde, que tem por missão “elevar os padrões de saúde de todos os povos; o PMA – Programa Mundial de Alimentação, a maior agência humanitária do mundo, que “fornece alimentos, em média, por ano, a cerca de 90 milhões de pessoas em 80 países, as quais 58 milhões crianças”, sendo muito utilizado na ajuda em situações de catástrofes, que conduzem à existência de refugiados; a ACNUR – Agência das Nações Unidas para Refugiados; a FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, para “aumentar a capacidade da comunidade internacional para, de forma eficaz e coordenada, promover o suporte adequado e sustentável para a Segurança Alimentar e Nutrição global”; a UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância, que promove a “defesa dos direitos das crianças, ajuda a dar resposta às suas necessidades e contribui para o seu desenvolvimento”.

Como organização internacional, com sede em Nova Iorque, parece irrepreensível a intenção com que foi criada. Com esta estrutura, o alcance das suas medidas e os meios envolvidos, bem podíamos estar descansados quanto a um hipotético colapso da Terra, e fazer-se dela um lugar bem melhor para se viver em paz, em segurança, com melhor saúde, educação e pão para todos. Tendo decorrido sete décadas, podemos questionar: “Então, o que tem vindo a falhar?”, uma vez que ligamos o televisor, em horário nobre dos noticiários, e ficamos a par de todas as atrocidades cometidas impunemente pelos “senhores da guerra” e pelos “donos do mundo”, que respondem com: “mais bombas”, “mais extorsão” e “que se lixe os direitos humanos”.

Reconheço o mérito e o trabalho incansável daqueles que, dentro das várias organizações que compõem e dão visibilidade e utilidade à ONU, prestam um inegável serviço aos povos mais desfavorecidos e àqueles que fogem das guerras e da fome. No entanto, não posso deixar de referir o problema a montante e que poderia, atempadamente, evitar ou, pelo menos, não deixar alastrar a escalada dos conflitos bélicos, sejam quais forem as causas que os originam. Sempre me preocupou a constituição e forma de funcionamento do Conselho de Segurança, senão vejamos: “É composto por 15 membros, sendo 5 membros com poder de veto” [EUA, China, França, Reino Unido e Rússia]. Assim, dez desses Estados são eleitos pela Assembleia-Geral, de dois em dois anos. Uma resolução deste órgão, por mais ou menos importante que seja, só “é aprovada se se registar uma maioria de nove”, em quinze possíveis. Mas, pelo Art.º 27.º da Carta das Nações Unidas, basta o voto negativo de um único membro permanente e a resolução será bloqueada, ou seja, simplesmente não será aprovada, e o problema que lhe deu origem continua a arrastar-se e a agravar-se. Isto faz com que os países representados, como membros permanentes, são juízes em causa própria. Especificando, com um caso concreto, e porque é conhecida a importância estratégica (e bélica) dos EUA, da Rússia e China, quase sempre com posições antagónicas em relação aos reais problemas mundiais, aponto a “primavera árabe” e as consequências atuais na Síria. Houve encorajamento, em muitos países do norte de África e do Médio Oriente, contra os “eternos ditadores” que dirigiam os seus países com mão de ferro. Por simpatia e por vontade e rebelião dos povos, foram sucessivamente depostos. Foram encorajados os opositores ao regime sírio, do presidente Bashar Al-Assad, e apercebemo-nos que tiveram treino e receberam armamento dos EUA, além de estes largarem, declaradamente, bombas sobre aquele território, a pretexto do avanço do autoproclamado Estado Islâmico. Por seu lado, a Rússia apoia estrategicamente o presidente sírio – que tudo faz para “silenciar”, à bomba, a oposição –, com a Rússia a intervir com aviões militares, dizendo que destruiu centenas de alvos do Estado Islâmico e ocultando que faz o mesmo com os “rebeldes”, sendo o próprio primeiro-ministro da Rússia, Dmitri Medvédev, a negar publicamente, no canal da estação de televisão pública, esse apoio ao regime sírio. Como se isso não bastasse, é incrível o número de países “aliados” em ações militares no espaço aéreo sírio a despejar bombas, fazendo com que as populações procurem refúgio, e a Europa, mesmo com todos os perigos mortais até lá chegar, continua a ser o destino preferido, enquanto outros ficam em “campos de refugiados” na Turquia, que irá receber da União Europeia 3 mil milhões de euros para “estancar, temporariamente, o fluxo migratório”. Estrategicamente, interessa à Rússia, EUA e China que a União Europeia saia enfraquecida e descaraterizada.

No site do Centro Regional das Nações Unidas pode ler-se que “o Conselho de Segurança não conseguiu aprovar uma resolução que teria ameaçado com sanções contra Damasco [regime de Bashar Al-Assad] devido aos votos negativos dos membros permanentes – Rússia e China”. Parece estar tudo dito. Mas acrescento que se tivesse havido uma ação séria, responsável e coletiva, este conflito estaria mais próximo do fim e evitaria todo este drama e a morte de muita gente inocente, levando ao começo de uma transição política.

Assim, não há OMS, PMA, FAO, ACNUR ou UNICEF que aguente e a ONU acaba numa gigantesca instituição, sem força nem credibilidade. Gostaria de dizer, convictamente: “Parabéns ONU”.



© Jorge Nuno (2015)

Obs.: Crónica escrita para a BIRD Magazine 

09/10/2015

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (20) - A Cigarra Alegre e a Formiga Preguiçosa

A CIGARRA ALEGRE E A FORMIGA PREGUIÇOSA

Vem-me à memória a fábula da cigarra e da formiga, cuja criação é atribuída a Esopo, e que teve relançamento e notoriedade pela mão de La Fontaine, que nos aparece como sendo o verdadeiro autor. Esta fábula era-nos apregoada desde pequenos, mostrando uma cigarra mandriona e uma formiga trabalhadora, tendo em vista apontar-nos o caminho dos valores do trabalho dedicado e da necessidade de poupança, a pensar nos dias menos bons, tudo isto em oposição ao “dolce fare niente”, com consequências desagradáveis para quem escolhe esta segunda via. O meu lado nobre, ou ingénuo, tinha dificuldade em encaixar a ideia de uma formiga castigadora e pouco solidária, perante o pedido de abrigo – com o significado de um pedido de ajuda –, por parte da cigarra, quando chegou o inverno rigoroso.

Já neste milénio, o livro de Luísa Ducla Soares e Pedro Nogueira Ramos, precisamente com o mesmo título mas com um “remake” da história nossa conhecida, viria a ser recomendado pelo Plano Nacional de Leitura para a Educação Pré-Escolar, 1.º e 2.º anos de escolaridade. Só que a versão desta dupla alterou a visão da cigarra foliona, com pouca vontade de trabalhar e mais predisposta a gozar a vida, e apresentou-a como “uma grande artista, que não trabalha porque só consegue olhar e sentir a Natureza que a rodeia”, deixando no ar esta interrogação às crianças leitoras: “Achas que merece ser castigada por isso?”.

Sem dúvida que eu, muito novo, senti na pele a necessidade de encontrar um sentido para a primeira versão da história. Sentia uma admiração enorme ao ver o carreiro incessante de formigas, sempre carregadas, a transportar alimentos. Também não me incomodava nada o “cantar” da cigarra, quando, no verão, me deslocava de bicicleta pelos campos; aliás, até gostava, e só conseguia identificar a presença da cigarra pelo “cantar”. Em tempos de ditadura, tempos difíceis… apercebi-me que a remuneração, como “formiga”, era escassa para quem tinha trabalhos sazonais, seja a retirar areia do rio, na apanha do tomate, ou como aprendiz ocasional numa qualquer oficina de mecânica. Depressa me apercebi que, no papel de “cigarra” – ainda mais por saber que esta só poderia ser cigarra-macho, já que a fêmea não “canta” –, iria recriar-me com a música, teria mais liberdade de movimentos, possibilidade de desfrutar de novos horizontes e de uma maior independência financeira, fazendo-o com muita satisfação pessoal, podendo enveredar por outros voos, com destaque para o prosseguimento dos estudos.

A nossa mente foi sendo formatada, pelo que é fácil aceitarmos como válido aquilo que existe há gerações e é aceite como verdade, mesmo que sejam “histórias da carochinha” e, neste caso, histórias de cigarras e de formigas. Temos, também, uma tendência para atrair tudo o que é negativo – “é o nosso fado”, diz-se e aceita-se candidamente – e, paradoxalmente, até parece que nos sentimos bem assim, como se fosse essa a nossa zona de conforto. Deste modo, desde muito cedo aprendemos a ter limitações, sentindo como natural a escassez de bens, de afetos, de inteligência e de uma visão mais aprofundada dos valores da vida, factos que nos impedem de ir mais longe. Assim, ficamos pela mediania e superficialidade, e quando surge algo diferente do que admitimos com válido, seguindo a cultura e os nossos padrões de pensamento [limitado, como é evidente], simplesmente rejeitamos.

Na Bíblia King James atualizada (Novo Testamento) é referido, algures: “Vai ter com a formiga, ó preguiçoso; olha para os seus caminhos [ou reflete sobre o trabalho que ela realiza] e sê sábio”, numa tentativa, com este exemplo, de promover uma melhor orientação para a espécie humana, que eventualmente tenha tendência para a preguiça. Talvez influenciado por isso, o ex-ministro Miguel Macedo, logo após a gigantesca manifestação de 2012, organizada pelo movimento “Que se lixe a troika”, assumindo as funções de pedagogo afirmou que Portugal não pode ser “um país de cigarras e poucas formigas”, o que levou à indignação dos mais atentos e que trabalham arduamente, sendo que alguém não resistiu à tentação de escrever, sob forma de resposta: “é fácil ser formiga-rainha na hora de receber € 1400 de subsídio de deslocação, quando efetivamente não se vive deslocado do formigueiro”.

E se lhe dissessem que o mito da formiga trabalhadora caiu por terra? Que se comprovou que cerca de metade de várias colónias de formigas são preguiçosas? A fonte é a revista R&D [Research & Development], que publicou um artigo que dava conta de um estudo efetuado por um grupo de investigadores da Universidade de Tucson, Arizona, EUA, tendo Daniel Charbonneau como responsável da investigação. Fazendo aqui uma descrição sumária, este estudo baseia-se na identificação e observação de 225 formigas “distribuídas por cinco colónias artificiais diferentes, num habitat simulado, com comida e ‘material de construção’ para as formigas usarem”, tendo, naturalmente, um sistema para as filmar. Ao divulgar as conclusões do estudo, afirmou o chefe desta equipa: “Quando começamos a investigar as sociedades compostas por insetos, percebemos que estas [as formigas] também têm os seus problemas: metade delas estão apenas a andar de um lado para o outro enquanto as outras fazem todo o trabalho”. Arrisca uma possível explicação, apontando, numa  semelhança com os humanos, que “as formigas servem para substituir outras que entretanto morrem ou então só começam a trabalhar quando o volume dentro da colónia aumenta”, acrescentando que “é também possível que as formigas inativas estejam a ser egoístas e evitem as tarefas mais perigosas enquanto usam os recursos da colónia para investir na sua reprodução”. Para se ser mais preciso, o estudo indica que 34 formigas fizeram o trabalho doméstico, 26 fizeram trabalhos externos, 62 eram generalistas e 103 eram “completamente ociosas”, ficando ainda a hipótese no ar que este último grupo poderia “constituir uma reserva quando fosse necessário atacar ou defender o formigueiro” ou que “algumas formigas poderiam não estar a par das tarefas e ficam a circular para evitar o trabalho”.
Também na Europa, a entomologista Danielle Mersch, da Universidade de Lausanne, Suíça, chefiou uma equipa de investigação relacionada com a atividade das formigas, concluindo que estas “organizam-se segundo as necessidades coletivas” e que “quando se encontram isoladas são na verdade, preguiçosas”, dando conta dessas conclusões na revista “Science”. 

Tal como foi deixada a interrogação às crianças leitoras, também eu, como autor desta crónica, pergunto ao leitor que a lê: “Acha que a formiga-operária, ao esquivar-se de transportar até 50 vezes o seu peso merece ser castigada por isso?”; “Não deveria servir de exemplo aos humanos, quando numa civilização moderna, incompreensivelmente, estão a ser espoliados dos seus direitos, obrigados a mais tempo de trabalho e a redução das condições de trabalho e de salário?
Como é bom ter-se uma atividade que permita contribuir para o bem comum, mas dando uma manifesta satisfação pessoal no papel de “formiga-operária”, desenvolvendo-a com a descontração e alegria de uma “cigarra-macho” no verão!


© Jorge Nuno (2015)

26/09/2015

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (19) - A Rosa Púrpura do Mundo Virtual

A ROSA PÚRPURA DO MUNDO VIRTUAL

Aos poucos, foi-se chegando à conclusão que cada pensamento tem influência sobre a realidade física e cria [mesmo] a realidade. Indo um pouco mais longe, há quem desenvolva a ideia da “transformação quântica do pensamento”, pratique, e ganhe muito dinheiro com isso. Li, num livro de Pam Grout: “neurocientistas dizem-nos que 95 por cento dos nossos pensamentos são controlados pelo subconsciente pré-programado da nossa mente. Em vez de efetivamente pensar estamos a ver um ‘filme’ do passado”. Isto quererá dizer que está ao nosso alcance mudar a visão das coisas e mudar completamente a nossa vida, fazendo com que a experiência de vida seja bem mais gratificante, desde que mudemos a forma de pensar, mais que ultrapassada, que temos vindo a usar até aqui. Entretanto, continuamos embrenhados num mundo ilusório, de fantasia e de ignorância.

Lembro-me, há cerca de 40 anos atrás, de ter recebido um familiar – que vivia numa localidade do interior e veio à capital –. A dada altura, pronunciou-se que as pessoas da cidade eram doidas, pois “ficavam a falar para a parede”, tal como se estivessem em Jerusalém, junto ao Muro das Lamentações. Acredito que seria essa sensação que os citadinos lhe transmitiam, embora acreditando que não estariam a fazer as suas orações, pois os gestos, a [falta de] concentração e o pouco tempo nessa pose não indiciavam tal. Disse-lhe, simplesmente, que essas pessoas estavam junto de um intercomunicador que há, normalmente, ao lado da porta principal de cada prédio, e que comunicavam com alguém que vive num dos andares. Se esse familiar tivesse dado um salto no tempo e hoje observasse as pessoas a caminhar nos passeios da cidade, com um ou mais sacos em cada mão e a cabeça torta, apoiado num dos ombros, certamente diria que toda a gente da capital, além de continuar doida (por falar sozinha na rua), tinha torcicolo, já que seria difícil imaginar que há agora um pequeno objeto – o smartphone – que nos permite fazer inúmeras tarefas, entre elas, como a mais trivial das funções, falar à distância com outra pessoa.

Lembro-me, também, de um filme com argumento e realização de Woody Allen – A Rosa Púrpura do Cairo – que fantasiava o “boom” do cinema dos anos 30, em plena recessão nos Estados Unidos da América, e retratava uma mulher [mal] casada, com trabalho precário e uma paixão pelo cinema, e um marido desempregado, que a explorava e maltratava. Era um filme dentro de outro, com o ator Jeff Daniels no papel do ator Gil Shepherd, a fazer do explorador Tom Baxter, para decifrar o enigma do faraó que mandou corar de roxo uma rosa para a sua rainha, constando-se que agora, no túmulo dela, crescem rosas púrpura. A dada altura, essa mulher – a atriz Mia Farrow, no papel de Cecilia – apercebeu-se que o personagem Tom Baxter reparou nela (por ter ido pela quinta vez ver o mesmo filme), vindo este a saltar da tela, em plena sala de cinema, e dirigir-se a ela, dando lugar a um casal apaixonado, que logo virou um trio amoroso, já que o ator Gil Sheperd a baralhou e fez ver que o “outro”, não passava de um personagem. Imagino quantas mulheres não se terão deliciado a ver este filme! Há ilusão, fantasia, romance… e parece que as pessoas apreciam isso mesmo, pois os milagres continuam a acontecer, mesmo que depois se acendam as luzes para os cinéfilos poderem sair em segurança.

O problema é que podemos não estar a equilibrar o mundo virtual com o real, começando pelo tempo que diariamente dedicamos ao virtual, precisamente por nos parecer real, fundindo ambos, e não termos consciência disso. Há que ter em atenção para não deixar degradar o relacionamento – esse sim, real – ao nível familiar entre marido e esposa, pais e filhos, núcleo de amigos… Não se trata de falsos moralismos, mas quantas vezes está o casal à mesa (como se vê na zona da restauração de um centro comercial), cada um com o seu telemóvel a ver o correio eletrónico, a consultar a sua página do Facebook (ou dos amigos) ou a comunicar noutras redes sociais, tendo aí uma vida mais ativa do que fora delas? Algo vai mal quando uma pessoa fica desesperada por estar quase a atingir o plafond dos dados móveis, e sentir que é pior do que ter a sinalética do painel da viatura a indicar que o combustível está na reserva; ou por não ter acesso a wi-fi (à borla) durante 24 minutos e sentir que é bem pior que ficar sem água na torneira durante 24 horas; ou correr para o telemóvel, num desassossego, logo que ouve o sinal inconfundível de uma mensagem acaba de chegar ou, simplesmente, para espreitar se há novidades, ignorando completamente o toque da campainha da porta. Para alguns especialistas, este tipo de comportamento já foi rotulado de patologia. Que tal começar por experimentar um fim de semana desligado da Internet e procurar outras alternativas, porventura interessantes, com contacto direto com familiares e pessoas amigas e com a natureza? Que tal restringir o acesso à Internet ao longo da semana, e fazer uma utilização moderada, como se estivesse a fazer uma dieta, sem sentir sacrifício ao não empanturrar-se desordenamente. A “cura de desintoxicação”, talvez possa passar por aqui, como treino básico. Ainda em relação ao pensamento e à vontade própria, há uma máxima que diz: “Se souber aquilo que quer, pode tê-lo”. Ter uma vida mais saudável e feliz, em grande parte, depende de cada um de nós; e uma “verdadeira” rosa púrpura (ou mais) pode ajudar a perfumar a nossa vida.

© Jorge Nuno (2015)


12/09/2015

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (18) - As Minhas Cuecas "Channo"

AS MINHAS CUECAS “CHANNO”

Mesmo ao meu lado, o rapaz resmungava e fazia má-cara perante a insistência da mãe. Apercebi-me que ela fazia um enorme esforço para tentar convencê-lo a experimentar aquele número e modelo de calçado desportivo, marca Crivit, que em boa verdade só tinha visto no Lidl. Mas nada demovia o rapaz, mesmo que a mãe dissesse: “já levei para a tua irmã, ela gostou e duraram até lhe deixar de servir”; “só custam € 19,99”; “os que tu queres, da Nike… custam cinco vezes mais e duram o mesmo tempo.” Ao fim de alguns momentos de impasse a mãe acabou por lhe dizer: “Pronto… se quiseres compro-te os ténis da Nike na feira”. Foi como se a mãe acendesse um novo rastilho curto, pois o rapaz voltou a explodir de imediato, argumentando que era calçado falsificado e não tinha a mesma qualidade dos originais.

Vivemos num mundo que venera e incentiva o culto das “marcas de prestígio”. A própria indústria publicitária também faz uso de estratégias para atrair as marcas e fazê-las gastar mais, agora e cada vez mais através da via digital. Pelos vistos, este jovem teria apreendido a mensagem – repetida à exaustão, com envolvimento de quantias exorbitantes –, emitida por quem tem a missão de fazer apetecível um produto ou uma marca, mesmo que o rácio custo/qualidade não justifique a sua aquisição.

Quanto mais valorizado estiver o produto ou a marca, mais prolifera a contrafação, na expetativa de que estará assegurada clientela e o lucro fácil. Não é por acaso a frequência com que as autoridades, como a GNR – Guarda Nacional Republicana e a ASAE – Autoridade para a Segurança Alimentar e Económica (Órgão de Polícia Criminal) fiscalizam e fazem a retenção de mercadorias contrafeitas, por se estar perante imitação e uso ilegal de marca, acontecendo maioritariamente junto de vendedores ambulantes. Através do site da ASAE, na área do “Grupo Anti-Contrafação”, ficou-se a saber que em menos de 30 dias aconteceu a apreensão de mercadoria contrafeita nas seguintes localidades: festas de São Paio, Torreira (avaliada em € 36.000); na via pública em Faro (€ 3.000); na feira quinzenal de Moimenta da Beira (€ 28.000); através de fiscalização rodoviária, em Albergaria-a-Velha (€ 6.000); na feira semanal de Tondela (€ 70.000); na via pública em Santa Maria da Feira (€ 5.500)…

Entretanto, são muitos os consumidores – por uma questão de status –, a acreditar que lhes trará prestígio e distinção superior, perante os demais, o uso daquela mala “Louis Vuitton”, daqueles óculos “Dior”, daquela peça de vestuário “Dolce & Gabanna”, ou daqueles sapatos “Prada” ou ténis “Nike”, mesmo sabendo que esses ditos produtos de “luxo” têm uma forte probabilidade de serem contrafeitos ou “desviados” por amigos do alheio e (re)colocados à venda, na ilusão que importa mais parecer do que ser.

Na qualidade de aposentado e sem ter a necessidade imperiosa de uma vida social ativa ou de ter que ir aperaltado para o emprego, sinto-me livre de ter que usar: uma gravata “Calvin Klein” (ou sequer usar gravata); uma camisa “Luchiano Visconti”; um fato “Armani”; uns boxers “Guess”; umas meias “Ralf Lauren” e uns sapatos “Galliano”. Como é bom sentir-me livre com o meu pijama de verão “Peng Li” (ou sem ele) e como é bom sentir-me livre com as minhas cuecas “Channo” (ou sem elas)!

© Jorge Nuno (2015) 

30/08/2015

A Construção dos Meus Versos

A CONSTRUÇÃO DOS MEUS VERSOS

Envolto em floreado emocional
Ouço os murmúrios da intuição,
Logo é detetada uma alteração
No fluxo sanguíneo cerebral.

A despropósito, uma agitação
De ondas gama no lobo temporal,
Julgada fenómeno irreal,
Traz-me revelação até à mão.
                                                                        
Raciocínio lógico em inação,
Sem factos analíticos adversos,
Faz intuir e leva à criação.
                                                                        
Não importa ser visto entre os dispersos
Se é com esta minha dispersão
Que costumo construir os meus versos.


© Jorge Nuno (2015)

27/08/2015

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (17) - A Inteligência, os Eleitores e os Burros

A INTELIGÊNCIA, OS ELEITORES E OS BURROS

Partindo do nada, como de costume, logo pairou no ar a ideia de escrever sobre Bragança, pois – por mais estranho que pareça – foi considerada a 3.ª cidade mais inteligente do país, situando-se no Top 4, juntamente com Lisboa, Porto e Oeiras, num estudo independente intitulado “Portuguese Smart Cities Index 2015”, efetuado pela IDC – líder mundial em Market Intelligence.

Da inteligência, por oposição, surge-me de imediato a ideia de escrever sobre burros. Pode-se pensar, e com razão, que os decisores têm dificuldade em agir, em planear e, finalmente, colocar no terreno as condições necessárias à prevenção de incêndios, e pode-se intuir que estou a pensar em “burrice”, por essa falta de estratégia nacional. Na verdade, sabemos que anualmente os incêndios se tornam um flagelo, pondo em risco bens e pessoas, exigindo um enorme esforço humano e financeiro no seu combate, particularmente na época de verão, e que ano após ano vamos assistindo, nem que seja à distância, nos primeiros minutos dos telejornais. Foi com agrado que soube que burros de terras de Miranda do Douro iriam ser usados na prevenção de incêndios florestais, num projeto a cargo da Associação para o Estudo e Proteção de Gado Asinino (AEPGA) e a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), experiência que se vai iniciar em 2016, tal como tem vindo a apresentar resultados positivos o projeto que promove a terapia com burros destinado a crianças com deficiências físicas e mentais, incluindo crianças autistas ou com dificuldades de relacionamento, e também com o envolvimento da AEPGA e da UTAD.

Sinto um aviso sonoro de chegada de correio eletrónico, e interrompo o raciocínio e o início da escrita. Trata-se de uma mensagem, contendo um link, enviado por um amigo jornalista e escritor, por quem nutro uma grande estima, devido ao seu perfil e envolvimento generoso no associativismo e na cultura. Nesse artigo, aborda com incidência o interior do país, apesar de viver no litoral, no distrito de Setúbal. Realça a “alteração do mapa das freguesias”, levando ao fim de imensas sedes de Juntas de Freguesia, com “perda do poder autárquico”, o “fim do programa de apoio para a terceira idade”, o retirar de “Centros de Saúde, Repartições de Finanças, Tribunais, Escolas (…)”, originando um forte retrocesso nas vidas dos cidadãos, deixando no ar uma inquietante preocupação quanto ao défice de esclarecimento e à intenção de voto destes portugueses que vivem no interior, com tendência para favorecer “quem lhes fez tanto mal”.

Vivendo eu no interior, por opção, e conhecendo esta realidade, não posso deixar de concordar com a maioria do conteúdo deste artigo. Acrescento que políticas erradas, ao longo de décadas, acelerou a desertificação do interior e considero que o país, de forma desproporcionada, está mesmo inclinado para o litoral, onde se promove o investimento e se concentram populações. Mas quanto ao sistema eleitoral usado para as legislativas, ao método de Hondt e representatividade na Assembleia da República (AR), ao excessivo número de deputados eleitos, aos elevados gastos nas campanhas eleitorais, ao financiamento dos partidos, aos lobbies instalados, à falta de interesse dos partidos políticos em promoveram “reformas” internas, que apregoam para o Estado, com consequências no bolso do cidadão… em tudo isto, de forma corporativa, defende-se o status quo. Não é inocente, ingrata ou de gente “burra”, “atrasada” ou pouco esclarecida, a opinião generalizada que paira sobre a classe política, com políticos de topo na hierarquia do Estado a ter pontuação negativa, que é como quem diz: vergonhosamente abaixo de zero.

Os portugueses, seja de que região forem, são livres de votar na formação partidária que quiserem, de votarem em branco, ou de não votarem, engrossando a enorme lista de abstencionistas em todo o país, como aconteceu nas últimas eleições para as legislativas, com abstenção de 41,1% (a mais alta de sempre) e nas últimas presidenciais, com 53,37% (também número recorde), a que se juntam mais os votos nulos e em branco, levando a que a atitude dos portugueses fosse associada a “indiferença, laxismo e falta de confiança”, perante o ato eleitoral, a política e os políticos.

Mas se ainda resta a dúvida quanto ao peso pouco expressivo dos eleitores que vivem no interior do país, deixo aqui o número de eleitores e o número de deputados a eleger no próximo ato eleitoral de outubro. Na faixa interior do país, que considerei composta pelos círculos eleitorais de Bragança, Guarda, Castelo Branco, Portalegre e Évora (eliminando Beja, por também ter território no litoral), há um total de 735.141 eleitores inscritos nos cadernos eleitorais, que colocam 16 deputados na AR. No círculo eleitoral de Setúbal há 725.783 eleitores que colocam 18 deputados na AR. Constata-se que os cinco distritos do interior citados têm mais 9.358 eleitores e elegem menos dois deputados que o de Setúbal. Só cinco distritos do litoral – Aveiro, Braga, Lisboa, Porto e Setúbal – elegem 60% dos deputados.

Na hora de votar – e falta cerca de um mês – o esclarecimento é importante, e nem quanto a isso os partidos políticos chegaram a acordo, preferindo fazer debates televisivos prévios, relacionados com os ditos debates que (tudo indica) não se vão realizar. Entretanto, há que deixar os burros fazer o seu trabalho, desde que em prol do bem comum, seja em terras de Miranda ou onde quer que se encontrem. Na hora de votar… há que fazer uso da inteligência, consciente que todas as ações/decisões produzem consequências, e ainda mais, quando se fala de inteligência coletiva, a exigir “reformas” do sistema partidário e firme mudança de atitude.

© Jorge Nuno (2015)