30/03/2014

Sofrimento



O sofrimento deixa de o ser no momento em que se lhe descobre um sentido.



Sylvia Browne [Sylvia Celeste Shoemaker] (1936 – 2013)

Autora norte-americana de renome mundial, com perceção extrassensorial, fez e participou em programas de rádio e televisão e ajudou pessoalmente milhares de pessoas, fazendo uso de grande parte do seu tempo para trabalhos com organizações humanitárias.



SOFRIMENTO



Génese de um conflito normal…

Lamento, angústia, aborrecimento…

Até ao clímax de um temporal,

Espraia-se um mar de sofrimento.



A mente, sempre em qualquer momento,

É motor de transformação real,

Ascendente de desenvolvimento,

Fim da frustração existencial.



Com anúncio do tempo do advento,

Na íntima escolha, ponto fulcral,

Compreender o sofrer dá alento.



Encontrado o sentido natural,

Sofrer… é estar de alegria sedento

Numa plenitude de paz geral.



© Jorge Nuno (2014)

09/03/2014

Escrever na Pedra Branca



Todos sabemos que quando nos rimos nos sentimos melhor. Comece a rir de si próprio. Quando cometer um erro ria de si. Não se leve a sério! É muito importante para uma vida saudável e relaxada.
Bob Proctor


ESCREVER NA PEDRA BRANCA

Hoje, tal como em quase todos os dias a seguir ao almoço, entro no meu escritório, ajeito a persiana para ter claridade suficiente, deixando entrar os breves instantes de sol de mais um dia chuvoso e faço uma rápida arrumação à secretária para começar a trabalhar na escrita. Não tenho nenhuma ideia prévia, nem quanto à temática nem quanto ao estilo… se vai sair um poema, um conto ou, quem sabe, se vou iniciar outro romance. Recosto-me no cadeirão, semicerro os olhos e procuro esvaziar a mente dos tristes problemas do quotidiano que me afetam, direta e indiretamente, por mais que recuse as suas causas e a incapacidade de resolução. Em turbilhão surgem-me muitos acontecimentos e aprendizagens anteriores e, em particular, uma que pratico em resultado da interiorização da frase do Osho: “Não se pode ser um criador se não se for um meditador”. Não sei quantos minutos estive assim. Apenas sei que ao fim de algum tempo senti um impulso, talvez por não estar a resultar totalmente a minha meditação, e levantei-me bruscamente, dirigindo-me ao canto do escritório onde está o meu equipamento de som de alta fidelidade. Meti um CD de música clássica no leitor, desta vez com concertos favoritos, com destaque para Joahnn Sebastian Bach, Antonín Dvorák, Franz Joseph Haydn, Claude Debussy, Franz Liszt, Manuel de Falla, Rimsky-Korsakoff e Joseph-Maurice Ravel. Já sentado, enquanto ouvia o primeiro trecho e ainda sem iniciar a escrita, lembrei-me de duas frases de gratidão, que costumo pronunciar diariamente. Uma é atribuída a Maomé e diz: “A gratidão pela abundância que recebeu é a melhor garantia de que a abundância irá continuar”. A outra frase é de Wallace Wattles, que refere: “A mente grata espera continuamente coisas boas e a expetativa torna-se fé”. Sinto que tenho razões para estar grato e agradeço ao Universo, e desta vez mantenho mesmo os olhos cerrados, recostado para trás no cadeirão. Vou-me desprendendo e, como que ao longe… ouço a aparente monotonia do Bolero, com pouco mais de 14 minutos de melodia uniforme e repetitiva, mas com breves sensações de mudança, através da dinâmica na orquestração, conseguida por Ravel. Relaxo… relaxo… e, quando parecia que a inspiração tinha partido de fim de semana, eis que algo começa a fluir…

“Hoje parece dia de São Nunca. Apesar de alguém me dizer para não gastar o meu latim, algo me impele a escrever “ad libitum” [a meu bel-prazer]. Não sei o que vai sair, mas sei o que estou a sentir.
Podem candidamente fazer crer: que o abuso não é uso, mas tão somente corrupção; que o abuso não destrói o uso; que sendo o abuso repreensível continua a ser lícito o uso; que a honestidade caiu em desuso; que o caminho do mal é fácil de trilhar; que o mal vem sempre de trás; que atire a primeira pedra quem nunca pediu; que aceitar um benefício é vender a liberdade; que um favor cria um devedor; que um devedor precisa de um tutor; que o tutor é que o decisor; que a decisão é antecipada e sustentada pelos peritos e pelos fazedores de opinião; que os peritos é que têm os livros; que os fazedores de opinião sabem do que falam; que na democracia cada um entrega o seu destino na mão de outros; que até para a Autoridade Tributária cada contribuinte é sujeito passivo; que às vezes lavando as mãos, sujamos a consciência; que é para ir até ao final do caminho mesmo que o caminho não seja esse; que este país não é para velhos; que agora este país também já não é para jovens; que os sete pecados não estão na Constituição e que cumprir a própria Constituição é que é pecado…
Como gostaria, tal como os antigos romanos, marcar o dia de hoje com uma pedra branca, por ser um dia feliz. Por vermos passar o poder da mão de poucos para as mãos de muitos; por vermos os problemas dos outros como os nossos problemas; por se entender a educação como instrumento que transforma a sociedade; por cada um arriscar ser “perito”, mesmo que cometa erros; por cada um promover o que quer ver mudado e coletivamente definir a estratégia do país, sem descurar os atos solidários e de criação de riqueza; por ver essa riqueza gerada ser distribuída por todos…
 Como gostaria de marcar o dia de hoje com uma pedra branca, por ser um dia feliz. Mas tenho que marcar o dia de hoje com uma pedra negra, porque negro está o meu país!”

Sinto um leve toque no braço. Com alguma lentidão estendo os braços, para os desentorpecer (por que não dizer espreguiçar?). Vou para esfregar os olhos e sinto o obstáculo dos óculos. Olho vagamente em redor, de modo desfocado, talvez seja a lente engordurada pela mão, e deparo-me com uma sombra à minha direita. É a minha esposa, que a rir me pergunta:
Queres tomar agora o comprimido para dormir?
­ Hã?!
Tenho aqui o comprimido para tu dormires!... – Insiste ela, com ar brincalhão, lembrando-se de uma das brincadeiras que lhe contei há 40 anos, casos frequentes no tempo da tropa. E sem esperar pela minha reação, pergunta, em jeito de pedido – Não vais arranjar o lanchezinho à Nina?  
Ainda atordoado, respondo-lhe com um seco: – Logo vi!
Então?... Adormeceste? – Pergunta, já com ar mais sério.
Não sei… acho que estava a sonhar que estava a escrever um conto! – Disse-lhe, provavelmente de modo pouco convincente, e como o poderia ser se eu mesmo estava confuso?
O homem, tu até sonhas com a escrita!.. Vai lá buscar o lanchezinho, anda lá!

Cerca de um quarto de hora depois na casa de banho, tentando reconstituir os factos, ainda penso desordenadamente… – Mas eu tenho mesmo coisas escritas, vi-as, estavam à minha frente! Falava em “escrever na pedra branca”. Mas quando é que eu as escrevi? Sopraram-me ao ouvido? Tratou-se de alguma psicografia? Não… que eu saiba não! Não, autopsicografia também não… isso era com o Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor / finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente (…)”. Mas espera lá… a psicografia é possível, pois o Damião Ramos Cavalcanti publicou um poema do Pessoa em 2010, que dizia qualquer coisa como isto: “Fingiu sem fingimento /Alegria de ser poeta / Supondo com tormento (…)” e chamou-lhe “Psicografia de Fernando Pessoa ou Fingir sem Fingimento”, mas pode não ter sido psicografia, apenas um trocadilho de palavras muito bem articuladas em memória do maior poeta português. Então, em que ficamos? Terá sido antes de adormecer? Se foi, por que razão não me lembro? Ela diz que sou um despassarado… um distraído, será que tenho que fazer o despiste do Mal de Alzheimer? Por vezes, esqueço-me, é certo… Espera lá… O que é que almocei ontem? Oops!... Mas não é assim tanta a confusão mental… Reconheço até que a flexibilidade de pensamento estará mais apurada agora. Não sinto apatia, mas grande genica. Estou com grande poder criativo. Se sinto irritabilidade?… Quem não sente, ao ver o que se passa à nossa volta? Não estou desligado da realidade, mas bem consciente dela. Acho-me mesmo uma pessoa lúcida. Neurónios a morrer? Claro que sim, é natural com o envelhecimento, mas certo… certo… é que os exercito todos os dias com a escrita. Diminuição de vocabulário? Não… acho precisamente o contrário, pois tenho-o vindo a aumentar e muito, a cada dia que passa. O dicionário é mesmo um companheiro indispensável, que prezo ter sempre ao alcance da mão. Empobrecimento da linguagem? Não… ela está sempre a dizer-me: “Oh homem, fala português!...”, por achar que “falo caro” e não haver necessidade disso em ambiente familiar. Dificuldades de coordenação? Bem… já não corro como dantes, mas para que é preciso correr, se basta andar calmamente? Afetado pelo stresse? Qual stresse? Nunca estive tão bem!… Controlo o tempo e o modo de o usar, apenas obedecendo à minha voz interior…
Coincidências… quando estou a pensar “em voz”, ouço a da minha esposa:
Nelinho!... Esqueceste o que te pedi?
Enquanto tentava perceber o que ela tinha pedido, voltou à carga, parecendo, pelo timbre de voz, estar a ficar impaciente:
Então esse lanche vem ou não? Daqui a nada está mas é na hora de fazer o jantar!...
Olho para o espelho e vejo que estou na casa de banho – O que é que estou aqui a fazer? – Interroguei-me e, pouco depois, encontrei a resposta – Ah!... Vinha lavar as mãos! Mas para quê, se eu estava a escrever um conto… Espera lá… agora me lembro… mas eu estava a dormir!... Ou vim à casa de banho por ter lido, no conto, “escrever na pedra branca” e a pedra de mármore branco só existir aqui, junto do lavatório?...
Nelinho!... Estás a ouvir? Onde estás?
Interrompido o meu raciocínio, respondo – Estou aqui, na casa de banho.
Não sabia. Pensei que tinhas ido a Espanha buscar o lanche! – Diz com tom irónico e continua a falar alto da outra divisão da casa – Mas se eu soubesse que estavas na casa de banho, estava preocupada… não fosses pela sanita abaixo, parar ao rio Fervença!...

© Jorge Nuno (2014)

07/03/2014

Age Quod Agis [Não te Distraias]



Reconhece o que está à vista e aquilo que está escondido de ti tornar-se-á claro aos teus olhos.



In Biblioteca de Nag Hammadi, coleção de textos gnósticos do cristianismo primitivo (que vai desde a sua fundação até cerca de 325 d.C.), contendo treze códices de papiro escritos em copta, a qual foi descoberta em 1945 na região do Alto Egito, perto de Nag Hammadi.





AGE QUOD AGIS [Não Te Distraias]



Há cinco dias fiz a cobertura da festa de encerramento de mais um ciclo anual, organizada conjuntamente pela APACDI – Associação de Pais e Amigos do Cidadão Diminuído Intelectual e pelo CERCDI – Centro de Educação e Reabilitação do Cidadão Diminuído Intelectual. Já o faço há uns anos e é sempre gratificante ver o empenho e o esforço despendido na preparação do evento, culminar da atividade desenvolvida, independentemente dos resultados esperados e obtidos. Como tem vindo a acontecer, o espaço utilizado é cedido pela autarquia e situa-se no interior das antigas muralhas do castelo, na velhinha Igreja de Santo Onofre, depois designada Igreja da Misericórdia, agora transformada em sala de exposições temporárias e sala polivalente, sempre que a programação o exija.

Toda esta zona, pela sua situação estratégica, foi palco de inúmeras disputas e lutas ferozes entre povos, que remontam ainda à própria fundação do país. Terá começado como uma pequena ermida, cuja data de edificação se perdeu no tempo e que foi ampliada em meados do séc. XVI, ficando com o porte de uma igreja de média dimensão, mas com a particularidade de ter uma bonita fachada com traços do maneirismo, restaurada recentemente, com aproveitamento de todos os túmulos existentes no seu interior, como tradição funerária naquela época, para os mais poderosos. O projeto de restauro contemplou a ampliação da igreja, vindo a ocupar o terreno contíguo nas traseiras, com a execução de um moderno edifício de quatro salas, para albergar obras de valor documental, histórico e artístico. Numa delas funciona um arquivo documental, simultaneamente como espaço de investigação e classificação de achados arqueológicos. A outra sala funciona como um museu vivo, de carácter etnográfico, de um passado recente. Uma terceira contém um acervo de moedas e utensílios com vários séculos e até milénios de existência, em ossos, metal e cerâmica e, uma ala, com destaque para a pedra - muitas das quais com inscrições ao tempo da ocupação romana. Finalmente, uma sala lúdico-pedagógica para acolher crianças e jovens de várias idades, que ciclicamente visitam este espaço, no âmbito da frequente cooperação entre escolas e autarquia.

No espaço da igreja, agora transformada em sala de espetáculo, criou-se um pequeno palco, com desvelo na decoração, luzes coloridas e sistema de som, para dar um ar mais festivo, alegre e motivador à atuação dos jovens utentes da CERCDI. Uma hora e meia antes, coloquei estrategicamente a câmara sobre o tripé e fiz alguns ensaios prévios, apesar da iniciativa da reportagem ser a de compilar os momentos mais interessantes, ocupando poucos minutos e gigabytes, para depois colocar online a peça jornalística, no site da InterVisão. Por regra, não o costumo fazer de uma forma generalizada, mas com este tipo de público tão querido, até dou uns ligeiros retoques no material em bruto e faço, posteriormente, uma sessão animada com os intervenientes e com os seus pais, amigos e professores, para satisfação de todos, onde naturalmente me incluo.

A sala estava mesmo cheia e tudo parecia estar alinhado para uma tarde de verão bem passada, mesmo em trabalho. Desagradável, por assim dizer, apenas o calor próprio do verão, que agora se iniciava, a juntar ao tanto “calor humano” naquele espaço e do calor proveniente dos projetores. Via-se muita gente a abanicar-se ainda antes do início desta sessão e, cada vez mais, à medida que o tempo passava, sendo evidente algum desconforto dos presentes. Estas crianças e jovens iam entrando, representando o seu papel e saindo do palco em pequenos grupos, a maior parte delas com vestimentas suplementares, de cariz ecológico – aproveitamentos de papel, papelão e plástico, sempre com as orientações e estímulos das educadoras e professoras. Surgiu então o inesperado e, pelo insólito, senti-me atraído a fazer um grande plano deste jovem ator, que aparentava ter cerca de onze anos, que se prolongou até uma professora ter retirado o miúdo de palco, perante um enorme aplauso, com quase todos de pé, como se se tivesse assistido à representação de um grande profissional. E o espetáculo continuou, com os restantes membros do grupo e com a tolerância habitual de quem admite que, nestes casos, não há derrotas e que são conquistas diárias todos os pequenos progressos que se registem.

No final da sessão, quando me preparava para guardar o meu equipamento e abandonar o local, fui abordado pela mãe do miúdo, que me pediu para não divulgar publicamente “aquelas” imagens, com o seu filho. Estava muito consternada e pediu a minha compreensão.

Nunca tinha estado tão ansioso para rever um vídeo e fazer a edição de imagem! Depois de o rever, repeti… não sei quantas vezes. E tomei a decisão, que me pareceu mais racional: fazer dois telefonemas e conseguir juntar, numa pequena sessão, dois amigos – a Teresa, uma educadora que conhece bem o miúdo e, o Fernando, um professor de Filosofia, que estudou num seminário e abandonou antes de se ordenar padre. Estes, sugeriram-me também para convidar o senhor padre Miguel, que anuiu e se juntou um pouco mais tarde ao grupo, quando lhe disse sumariamente o conteúdo do vídeo e que a presença dele tinha importância.

Em conjunto, visualizámos a tal parte do vídeo, transformando aqueles minutos em cerca de três horas de acalorada conversa, com perspetivas diferentes sobre o fenómeno observado. Ficou apenas uma possível tradução, com eventuais e admitidos erros, pois tanto o Fernando como o padre Miguel argumentaram que o tempo do latim já ia longe, tanto na aprendizagem como nas missas. Mesmo assim, arrisquei a introduzir legendas em Latim e Português [entre parênteses reto].

A peça de teatro infantil de curta duração intitulava-se “Galo, Galinho, Galão. Agora já tenho esporão!?”, projeto com ambiência num galinheiro, cujo argumento propiciava o esboçar de muitos sorrisos e vários intervenientes em palco, com o galo mais velho a querer reformar-se e passar o testemunho ao galo Zé, bem mais novo, mas com outro galo e uma galinha, filha do que se quer reformar, a tentarem convencer que essa não era a melhor solução. A dada altura o nosso jovem, que insistentemente mostrava inquietude e limpava o suor com as mãos, pareceu abstrair-se de tudo e começou por dizer, sem convicção, as primeiras palavras do texto que lhe estava destinado, após a deixa do colega, e depois sentiu-se uma distorção da sua voz, com um timbre diferente, como se se tratasse da voz de um adulto, comentando em jeito de enigma, com alguns aspetos imperceptíveis:

Ex imo pectore [do fundo do coração] coram populo [sem receio] fiat lux [faça-se luz] fugit irreparabile tempus [o tempo foge irreparavelmente] mea sententia [a meu ver] difficile est satyram nom scribere [(… diz-se) quando a sociedade está corrompida] lucri causa [pelo interesse, pelo lucro] (…) modus in rebus [(…) em tudo deve haver moderação] cui plus licet quam par est, plus vult quam licet [aquele a quem se permite mais do que é justo quer mais do que é permitido] (…) dormientibus non succurrit [(…) o direito não ajuda os que dormem] (…)

Em sobreposição, uma voz feminina na plateia falava alto, para se fazer ouvir: – Não te distrais, não distraias!... – Para logo haver umas quantas vozes a mandar calar essa mulher, levando a algum burburinho e muitos simultâneos shhiiiiiiiiuuu!

O miúdo, indiferente, continuava na mesma toada: – (…) malesuada fames [a fome (é) má conselheira] (…) dum spiro spero [(…) enquanto respiro tenho esperança] finita causa, cessat effectus [acabada a causa, cessa o efeito] (…) mendaci ne verum quidem dicenti creditur [ (…) ninguém acredita no mentiroso, mesmo quando fala verdade] (…) ad nauseam [até enjoa] (…) pabula da corvis, dement tibi lumina corvi [ (…) dá de comer aos corvos, eles te arrancarão os olhos] (…) maio mori quam fœdari [antes (quero) morrer que manchar-me] (…) fiat justitia, ruat cœlum [ (…) faça-se justiça, mesmo que o céu caia] (…) – Sendo aqui que o miúdo, que parecia desfalecer, é retirado de cena, perante muitas aclamações benévolas, de pé.

Diz o Fernando – Ainda nós temos sorte em esta voz ser em latim e podermos, ou bem ou mal, fazer uma aproximada tradução. Mas sei de casos em que a linguagem é ininteligível, ou por exemplo, identificada como aramaico ou qualquer outro dialeto com vários séculos antes de Cristo…

Surpreendentemente, o padre Miguel, sai-se com esta – Fizeram bem em não interromper o miúdo pois poderia ser prejudicial qualquer outra interferência.

A educadora Teresa disse que nunca se tinha apercebido de algo deste género com o miúdo, que já lidava com ele há uns anos e que, pela surpresa, sente que até demorou a reagir. Acrescentando que sabia do caso de uma conhecida atriz, que ocorreu em 2003 no castelo de Montemor-o-Velho, quando rodavam uma novela para a TVI, creio que era “O Teu Olhar”, e que essa atriz também teve uma alteração de personalidade, a par de outros fenómenos estranhos sentidos no local, chegando mesmo a chamarem o pároco de Montemor, com a notícia a ser difundida na ocasião pelo Correio da Manhã.

O padre Miguel, confirmou saber deste caso, mas desvalorizou, dizendo que o colega foi chamado para dar a bênção a quem a pediu, só isso!

O Fernando insiste – Procurem Virginia Tighe no Google, que encarnou Bridey Murphy, uma irlandesa do séc. XIX – e continuou a conversa, com intervenções dos outros dois, enquanto eu procurava no computador portátil.

Poucos instantes depois – Mas ela estava sob hipnose e a ti, se te hipnotizarem num palco, podes estar convencidíssimo que estás numa jaula a domar um leão, agarrado a uma vassoura a dançar o tango ou a fazer qualquer outra palermice para o pessoal se rir! – digo eu, dirigido ao Fernando.

– O que estás para aí a dizer?! Viram alguém a hipnotizar o miúdo? Só digo que há provas genuínas da existência de vidas passadas e que há provas de incorporações de entidades espirituais a quem é permitido usar o corpo de outra pessoa para se manifestar – argumenta o Fernando, continuando – Quando chamam um padre para fazer exorcismo, o que é isso? Acham que é só para deitar água benta no local? Dar a bênção à pessoa? Mas mesmo sob hipnose pode chegar-se a vidas passadas. É o que alguns terapeutas fazem na regressão…

– O miúdo apanhou foi calor a mais e começou com alucinações! Acontece muitas vezes… olha, por exemplo, aconteceu com vários tenistas profissionais na Austrália e noutros países com temperaturas elevadas e até os apanha bolas… –  Acabando eu por ser interrompido pelo Fernando.

– Alucinações são percepções sem estímulos externos e o miúdo não tem sequer consciência do que lhe aconteceu, não guarda memórias desta realidade…

– Ainda bem que não se lembra – diz a Teresa – Coitada da criança e dos pais, já lhe bastam o problema que tem. Deixa-os viver as suas vidas, naturalmente – vira-se para mim e diz – Faz mas é o seguinte: trata da montagem do vídeo, excluis essa parte e vai ser agradável rever a festa. Eles vão adorar! Estou mesmo a ver a reação do galo Zé! – e esboçou um sorriso rasgado.

 – Isso mesmo! – diz o padre Miguel entusiasmado e continua, visivelmente a querer colocar uma pedra no assunto – É um episódio passageiro e daqui a uns meses ninguém fala mais nisso e a criança há de crescer sem qualquer sobressalto.

– Pois… mas por que razão não podemos explorar um pouco mais este assunto, já que um dos objetivos na vida é viver a verdade ou, pelo menos, procurar dar passos para chegar até ela? – insiste o Fernando.

– Oh filho, grandes são os desígnios de Deus, que muitas vezes temos dificuldade em entender. Não tentes descobrir mistérios!... – remata o padre Miguel.



© Jorge Nuno (2014)