07/02/2014

Olhares no Comboio

OLHARES NO COMBOIO

Olhei para ti, quando seguíamos na carruagem da frente. Sentada no banco, virada para o sentido da marcha, cotovelo sobre o peitoril da janela, de olhar distante para os montes de picos manchados de branco, numa viagem que parecia infinita. Por vezes eu passava para o outro lado do pequeno corredor, para absorver melhor toda a paisagem estranha para mim, deste Reino Maravilhoso que ia descobrindo. Sem te aperceberes, ia desviando o olhar insistentemente para ti, como que a querer, com a extensão desse olhar, chegar fundo ao teu subconsciente, tentar adivinhar o que ia no teu pensamento ou simplesmente admirar-te. Despertava bruscamente, quando a máquina a vapor da linha do Tua soltava faúlhas, que entravam não sei por onde, apitava várias vezes para afastar animais ou avisar pessoas, ou era projetado pelos solavancos inesperados, que aos poucos deixavam de o ser, numa habituação de difícil entendimento. A via estreita, num traçado serpenteado em zonas rochosas, escarpadas e os desajustes na bitola, proporcionava esses laterais movimentos da massa de ferro, mantendo o comboio a sua toada de marcha lenta até ao próximo apeadeiro.

Lembras-te quando dizíamos, em brincadeira, que poderíamos sair do comboio, ir apanhar figos e voltar?

Lembras-te quando dizíamos, em brincadeira, que já deveríamos estar em Espanha, pois tínhamos tempo suficiente de viagem para isso?

Lembras-te quando se preparava e levava uma merenda especial para um dia de viagem, de sol a sol, gasto para percorrer menos de 400 quilómetros?

Lembras-te das mudas no Tua e Campanhã, fazendo-se grande parte do percurso junto ao Douro, que parecia sempre um espelho de água?

Não sou homem para viver do passado, bem pelo contrário, gosto de viver o presente e, apesar da idade, gosto de ter um olhar sereno e confiante no futuro. Mas a cada dia que passa, quando era suposto dizer que já nada me espanta, há sempre algo que me deixa perplexo, não só pela comparação com valores perdidos, caídos em desuso, como se fosse uma desgraça ser-se honesto, ou como se a palavra de honra, já para não referir contratos firmados, fossem uma mera ingenuidade de quem acredita em tal. E a minha perplexidade parece contrastar com a indolente, e já referida, habituação de difícil entendimento, como a rã que acaba fervida em lume brando, sem reagir, pois se o fizesse estaria a salvo.

Lembras-te quando te escrevia diariamente, colocava um selo de 1 escudo na carta e ela te chegava no dia seguinte? Tens presente que agora mete-se uma etiqueta equivalente a 80 escudos e a carta chega uma semana depois?
Poderia continuar a fazer-te muitas, mas mesmo muitas, perguntas de difícil entendimento!...

Já lá vão 40 anos de memórias, a que as células resistem! 

É pena que não te possa rever naquele comboio, sem as pressas atuais, pois teríamos todo o tempo do mundo. É pena, nem que seja só mais uma vez. É pena, pois desativaram a linha e foram progressiva e escandalosamente roubando os carris, tal como nos querem desativar a máquina e vão progressiva e escandalosamente roubando no valor das nossas reformas!

Resta-me a felicidade de te ter por perto e saber que não me conseguem roubar as memórias e os sonhos, que vou desenvolvendo a cada dia.



© Jorge Nuno (2014)

2 comentários:

  1. Magnífico e emotivo texto no qual, certamente, todos os transmontanos, menos jovens, se revêem. Uma bifana, ao chegar ao Tua...

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    1. Obrigado pela visita, leitura e comentário. Bifana... e outras iguarias com que nos identicamos mais em Trás-os-Montes.

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